quarta-feira, 16 de novembro de 2011

I

A tarde caía lenta e serena avermelhando o céu da cidade. O ônibus já estava parado no ponto, de portas abertas, esperando os passageiros ajeitarem a bagagem e terminarem as despedidas que não queriam ter fim. A terra seca deixava ver aqui e ali uns chumaços de capim entre as árvores esparsas que contornavam as casas. No fim da tarde, o céu se coloria até atingir a cor da terra vermelha. A multidão de gente no ponto do ônibus parecia toda querer entrar para ir embora dali, deixar para trás aquela vermelhidão sem fim das terras do sertão. Mas não havia lugar para todos, quem sabe amanhã...
Quando a lua cheia começou a surgir no céu já quase escuro, no princípio daquela noite que seria a primeira da nova vida de João, o motorista entrou no ônibus e buzinou três vezes, dando o sinal de que era hora da partida. Alguns pássaros atravessavam o céu e tinha quem pensasse que era sinal de chuva. Os mais velhos sabiam que não, aquele não era o pássaro do aviso. João, sem pensar, olhou para o céu e viu o bando desaparecer no horizonte na direção do clarão da lua. Voltou a cabeça para baixo e abraçou mais uma vez a mãe, o pai, os irmãos todos, Clarinha, Padre Antonino, Professora Paulina, os poucos amigos. Subiu os degraus de cabeça baixa para segurar o medo e sentou-se em sua poltrona, ao lado de uma senhora gorda que trazia um exemplar do Novo Testamento nas mãos. João, num relance, pensou que deveria ter pedido ao padre um Livro para ele. Para ter companhia na vida nova que ia começar e que teria que viver sozinho. Olhou então pela a janela e viu todos ainda lá parados, as pessoas todas que tinha na vida, olhando-o partir para São Paulo à procura de... de quê, meu Deus, à procura de quê que vou nesse ônibus velho por esta estrada longa demais, que nunca conheci para além da cidade mais próxima? E, de dentro das perguntas que se fazia, João acenou para trás, vendo-os desaparecer na poeira deixada pelo correr do ônibus. A estrada seguia reta atravessando o sertão em direção ao Sul, cortando de cima a baixo o Brasil, do interior do Ceará à maior cidade do mundo. João não sabia se era mesmo a maior, mas haveria de ser – cidade tão grande, capaz de receber dezenas de ônibus carregados de nordestinos todos os dias, haveria de ser como o paraíso, onde sempre teria lugar para quem precisasse entrar. João era assim, uma espécie de tolo que descia rumo ao que pensava ser o centro do mundo, com a certeza de lá encontrar o seu lugar. Ia com o coração leve, já esquecido das perguntas sem resposta, carregado de uma pureza que já não se vê mais, que já nem se quer mais. Ia levando a esperança toda que tinha, a certeza de poder voltar de férias trazendo dinheiro e presentes e quem sabe levar Clarinha com ele para casar e ter família. O medo, quando vinha, era pequeno, e João logo o espantava com as certezas que o empurravam. Não pensava nas dificuldades que poderia ter e nem no perigo de que o pouco dinheiro que tinha se acabasse antes de conseguir um emprego. São Paulo era grande e tinha lugar para todos.
Era com esse pensamento que João seguia viagem rumo a seu destino. Seguia de olhos muito abertos, olhando a vastidão do sertão pela janela também aberta, e o vento cortando-lhe o rosto era um pequeno refresco para o calor. A noite clara permitia que ele enxergasse o contorno das pequenas árvores que ainda resistiam. No mais, era a terra e a poeira. Poeira vermelha que entrava pela janela com o vento, deixando o cabelo duro e a pele retesada. João não se importava. Seguia com os olhos abertos e o desejo ainda mais aberto à espera do mundo novo. São Paulo devia ser uma coisa linda. Nas fotos que já tinha visto, gostava mais era da quantidade de prédios altos como gigantes... se pudesse, moraria no alto do mais alto deles e quem sabe lá de cima não conseguiria ver sua Clarinha esperando por ele no batente da porta... Do alto de São Paulo se poderia ver o mundo inteiro. João esboçava um sorriso quando pensava no vento limpo, sem a poeira do sertão, batendo em seus cabelos na janela mais alta de todas. Lá embaixo, as ruas e os carros. Tinham dito a ele que não era fácil ter um carro e morar no alto de um prédio, mas João não se importava, nada tinha sido fácil desde o dia em que nasceu – o último dos dez filhos, a pobreza e a doença, a falta de médico e de recursos, as febres altas e a fome que roía as tripas por dentro, os dentes fracos, o sorriso frágil, o olhar sempre lançado no horizonte sem fim do sertão. Quase morreu mais de uma vez, por febre ou machucado, e não perdeu o jeito de lançar longe o olhar e as vontades. A distância imensa que podia ver da janela do quarto era desde sempre o convite. Sonhava com o dia em que se colocaria a caminho, passo a passo, na direção do sem fim que via. Quando tinha nove anos já tinha juntado a coragem de que precisava. Pegou os trocados todos que tinha guardado no bolso da calça, calçou as botas do irmão mais velho e saiu. Se pôs a caminho. Andou até não aguentar mais, e nada mudava. O dia inteiro se passara e o horizonte continuava à mesma distância diante de seus olhos. Terra e poeira. Chumaços de capim, pequenas árvores retorcidas. Cactos. Uma ou outra casa ao longo da estrada. E o mesmo horizonte, a mesma vermelhidão. No final do dia, depois de ter andado sem descanso e sem beber ou comer, caiu desmaiado no chão bruto e seco. Um homem passou por ele e o reconheceu, o moleque menor do Luiz da Dôra. Colocou-o no lombo do burro em que vinha montado e o levou de volta para casa. Chegaram lá quase à meia noite e encontraram a família toda reunida em torno da imagem da santa, rezando por João. Quando viram o menino quase sem conseguir andar, todo sujo e com a tristeza toda do mundo estampada no rosto, caíram todos de joelhos, menos Dôra que foi pegar o filho nos braços e cuidar de seu corpo com água e comida, que contra a tristeza ela não podia lutar. João recuperou um pouco da força depois de beber mais de um litro de água e de comer o mingau que a mãe tinha preparado. Perguntaram o que tinha acontecido e João só disse que tinha saído em busca do mundo lá de fora, mas que só tinha encontrado sempre esse mesmo mundo de terra e poeira que ele via desde sempre. Disseram então que parasse de sonhar tanto e se dedicasse à lição e à lida na roça. Mas a professora Paulina, que também estava lá e que nessa época era ainda quase uma menina, disse a ele fazendo carinho em seu rosto que existiam, sim, muitos mundos diferentes daquele ali e que quando ele crescesse talvez pudesse conhecê-los, mas que era preciso partir de ônibus, porque o sertão era muito e muito grande, impossível de ser vencido apenas com os pés. João escutou cada palavra da professora e sorriu. Quem estava em volta viu a beleza do seu sorriso e mesmo quem não acreditava no que tinha dito a professora aliviou-se na certeza de que João ia ficar bem.
Ficou bem daquela vez e de muitas outras em que se viu às portas da tristeza. Quando conheceu a Miroca, lá pelos treze anos, foi uma dor sem fim. Miroca era bonita e dançava forró nas festas enquanto o pai deixava, depois voltava para casa, cheia de orgulho e alegria. Ela tinha catorze anos nessa época, e João não perdia uma chance de vê-la, nas festas, nas ruas, onde quer que fosse. Vigiava a moça o quanto podia, andava atrás dela, comprava chocolate e compraria briga, se fosse preciso. Um dia resolveu se arriscar e falou com ela, disse que era a moça mais linda do mundo inteiro e que queria muito ser o namorado dela. Miroca riu como quem vê a peraltice de um moleque e passou a mão no rosto dele; depois disse que não podia, que já tinha seu namorado. João não quis acreditar, pois a seguia por toda parte, noite e dia, e nunca tinha visto ninguém com ela que tivesse jeito de namorado. Ela então disse que ia lhe contar um segredo e falou bem baixinho no ouvido dele, deixando-o quente e assustado, que, como o pai não a deixava namorar, fingia que dormia cedo e então fugia pela janela para encontrar o Marcão do mercadinho, era ele o namorado. João sentiu a fincada no coração e saiu correndo sem olhar para trás. Deitou-se na cama onde passou o resto do dia e só saiu quando a mãe chamou para o jantar. Não conseguiu comer, ficou sentado na mesa olhando o prato com o olhar perdido. Quando a mãe perguntou se estava doente, caiu em prantos com a cabeça sobre a mesa. Lindalva, que era a irmã mais velha, levou-o para o quarto e viu que queimava em febre. Dormiu com uma toalha molhada sobre a testa e no dia seguinte não quis ir à escola. Ficou assim por alguns dias, pensando no Marcão. Era um rapaz muito maior do que ele, já devia ter seus dezoito anos, era forte, trabalhava, tinha até dinheiro para casar, se quisesse. Miroca era menina e tinha olhado para ele como se fosse uma mãe. João sentiu-se pequeno como um inseto perdido no chão. Carregou a tristeza por muito tempo, até que a dor foi passando de mansinho e conheceu outras meninas.
Já tinha quase dezessete anos quando começou a gostar de Clarinha. Se conheciam desde pequenos, iam juntos para a escola, brincavam juntos na praça. Um dia ela passou por ele com duas amigas, as três chupando picolé, conversando tão distraídas que nem deram conta da presença dele. João chamou por Clarinha e pediu um pedaço do picolé. Ela estendeu o braço oferecendo e ele segurou na mão dela para não deixar o picolé cair. Sentiu então um nervoso estranho e segurou com mais força na mão que também parecia trêmula. As duas amigas tinham continuado o passeio, rindo escondido do sem-jeito de João. Porque João era assim, desajeitado para a vida. Não conseguia saber o jeito certo de fazer as coisas, estava sempre tentando aprender. Mas, nesse dia, soube o que fazer. Deixou por querer o picolé cair, mas não soltou a mão de Clarinha: puxou-a para perto de seu corpo e beijou sua boca cor de rosa que se oferecia como um botão se entreabrindo. Ela o abraçou com força e disse que já não aguentava mais de tanto esperar por esse beijo. João sorriu e caminharam de mãos dadas para o mercadinho e compraram mais picolé. Quem os atendeu foi a Miroca, grávida do segundo filho, mulher do Marcão. Ela olhou para João com malícia e disse a Clarinha que tinha sido o primeiro amor da vida dele. João corou e abaixou os olhos, Clarinha apertou a mão dele com força e com ódio da Miroca que tinha falado só por maldade.
Desde aquele dia, João e Clarinha só andavam juntos pela cidade. Estudavam, ele trabalhava na roça com o pai, e ela tentava fazer planos para o futuro. Arranjar um trabalho qualquer, casar e ter família. Mas João nem escutava. Queria trabalho qualquer não. Queria vida boa e grande para sua Clarinha. Queria ir para São Paulo conhecer o mundo e voltar para buscá-la. Clarinha não gostava dessa conversa, mas também não discutia, porque não queria brigar. Seguia tentando arranjar um jeito de fazê-lo mudar de ideia.
O ônibus seguia sempre em frente na estrada longa e reta. João perdia-se em lembranças e devaneios sobre a vida nova que começava. Sorriu quando lembrou-se de que tinha sido um menino desajeitado... Mas ele era ainda todo desajeitado para a vida. Tinha a cabeça carregada de sonhos e ninguém conseguia dissuadi-lo de suas próprias ideias. Havia distância entre João e o mundo, mas ele não se dava conta. Olhava pela janela com o prazer sem preocupações de quem consegue só receber o vento no rosto e se alegrar pelo alívio para o calor. João gostava da vida, mais ainda da vida nova que começava bem ali, no ônibus, no meio da estrada desconhecida. Fechava os olhos e via São Paulo, a cidade maior de todas, a cidade que lhe daria o mundo novo, a vida nova.
Quando o ônibus parou pela primeira vez para lanche e descanso, João desceu feliz, disposto a conhecer cada fresta do mundo que se oferecesse a seus olhos. Foi ao banheiro e comprou café e pão com manteiga. Gostou de tudo. Ouviu alguém reclamar da sujeira do banheiro, mas sorriu para si mesmo, não estava tão sujo assim. Era o mundo novo e João queria recebê-lo inteiro. Só se inquietava quando vinha forte a vontade de conhecer logo uma coisa que fosse mesmo nova nesse mundo tão grande, que por enquanto ainda era feito de poeira e calor. Sentia de leve o ventinho da noite que não chegava a esfriar, exatamente como em sua casa deixada para trás há mais de quatro horas. Não sabia se ainda estavam no Ceará: não importava, sabia que ainda era o sertão.
De volta ao ônibus, encontrou sua companheira de poltrona lendo novamente a bíblia pequena que tinha deixado cair ao cochilar, logo no primeiro embalo do ônibus. João pediu licença e sentou-se com os olhos colados na janela.
– Vai pra onde, moço? – escutou de repente a mulher perguntar. Estava já tão desacostumado a ouvir alguém se dirigir a ele, pois desde que começara a viagem não tinha ainda aberto a boca para falar, e a viagem já parecia durar a vida toda, que se desconcertou e quase não soube como responder.
– São Paulo. E a senhora?
– Vou pra lá também, praquele mundão sem fim de gente e pedra.
João não entendeu:
– Pedra?
– Pedra, sim, tudo lá é feito de pedra, casa, prédio, fábrica. É olhar para a cidade e só se vê tudo cinza e as pessoas correndo de um lado para o outro. Gosto não. Vou só porque minha filha mora lá com o marido e teve criança. Preciso ajudar pra ela ir trabalhar, senão morrem todos de fome lá.
João entendeu menos. Trabalhar muito só para não morrer de fome... Mas isso era o que já se fazia lá em seu mundo velho, na casa do pai e da mãe, e também na casa de Clarinha e de todos da cidade. Mas não quis conversar mais não. Queria era olhar a janela, ver o que tinha na beira da estrada.
– Vai fazer o quê em São Paulo, moço?
Desta vez João se irritou, mas respondeu sem olhar para o lado:
– Vou trabalhar para buscar minha noiva e me casar.
A mulher sorriu e não disse mais nada. Voltou para a leitura do evangelho, que logo escorregou outra vez de suas mãos enquanto dormia sem sonhar. João nem percebeu, respirando fundo o cheiro da noite.
Depois de algum tempo, dormiu também e quando acordou já era dia. A mulher a seu lado roncava de boca aberta. João pegou no chão o livrinho caído e se pôs a ler uns pedaços. Pensou outra vez que devia ter pedido um daquele para padre Antonino. Leu por acaso a passagem em que Jesus chama os pescadores para o seguirem. Fechou o livro e o colocou nas mãos da dona. Fechou os olhos e ficou imaginando os dois homens simples sendo chamados a abandonar tudo o que faziam e a casa onde moravam para seguir ao Senhor; se fosse com ele, iria sem medo. Nada o prendia nessa vida, seguiria o Senhor por onde fosse preciso, sem chorar pelo que deixava para trás. Não tinha agora mesmo deixado Clarinha e o pai e a mãe e os irmãos e os amigos, e a cidade onde tinha vivido sempre? Queria, sim, voltar para buscar Clarinha, mas, se fosse preciso, não voltava e a deixava viver seu caminho, que o dele era novo, sempre novo. Entrava na vida nova que planejara para si desde moleque, a vida nova era sua vida verdadeira. Era o destino que chamava. E João nem se dava conta de que o chamado do Senhor era o mesmo que o chamado do destino e que, sendo assim, todos eram os chamados. E o destino de João era a estrada que se estendia bem em frente à sua janela desde o dia em que nasceu pela mão da parteira mais antiga de cidade, Maria do Parto, que agora já não vivia e que tinha feito viver centenas de crianças por toda a vida.
Quando nasceu, a mãe quase morreu, tinha já quarenta anos e ele era o décimo filho que punha no mundo, fora os quatro que não tinham vingado. Quarenta anos que pareciam ser sessenta, tão cansada da vida era a mãe quando teve que cuidar de João, que nasceu pequeno e doente. Na época, dos nove filhos maiores, três viviam na capital e os outros seis estavam em casa, cinco eram crianças ainda. Lindalva era a mais velha de todos, tinha já vinte e cinco anos no nascimento do caçula, e nunca quis sair de perto do pai e da mãe. Ajudava na lida da casa e da roça, tinha cabelos compridos sempre presos em duas tranças, e cuidou de João como se fosse a mãe. João a chamava de Dindinha, mesmo sabendo que não tinha sido batizado, que naquela época a cidade estava sem padre e quando padre Antonino chegou, ele já era moleque grande e ninguém mais se lembrou do assunto. Queria se batizar, gostava das coisas da igreja, mas padre Antonino disse que não se preocupasse com isso, que Deus não dava tanta atenção às coisas pequenas não. Perguntou então, cheio de espanto: Mas padre, se o batismo é coisa pequena, o que é que é grande então? O padre não conseguiu se explicar direito, disse só alguma coisa sobre ajudar a quem precisa e não se deixar levar pelo caminho do mal. Mas o que é, padre, o caminho do mal? Padre Antonino sorriu e disse: se preocupe não, João, você nunca vai conhecer esse caminho não, que você tem a alma pura.
João ali no ônibus se perdia nessas lembranças enquanto olhava o livrinho no colo adormecido da mulher gorda que não gostava de São Paulo. Queria ainda saber o que é o caminho do mal e o que é a alma pura que ele tem. João se viu refletido na janela do ônibus e pensou que era um homem qualquer, nem puro nem nada. João não sabia que era ainda o moleque sem jeito que tinha deixado cair a imagem da santa em plena procissão.
Tinha sido numa festa da padroeira. Procissão grande, vinha gente de todo canto. A cidade ficava cheia, com o povo todo das cidadezinhas próximas. Festa bonita, com barraquinhas pelas ruas e as pessoas todas alegres, com orgulho da cidade. A cada ano, uma família era responsável pela imagem da santa. Naquele ano era a vez de sua família. Ocasião muito esperada, que desde menina Dôra sonhava em ter a santa em sua casa e prepará-la para a saída da procissão que começava bem cedo e seguia em direção à igreja onde padre Antonino rezava uma missa especial. Rezava pela santa e pela cidade e pela vida de todos os que moravam lá ou que lá estavam de visita. Na hora da saída, o andor já preparado para receber a imagem, João pediu à mãe para levar a santa até à porta. A mãe deixou, receosa, mas também orgulhosa de menino tão achegado às coisas de Deus. João veio vindo lá de dentro, as pessoas lá fora já vendo a santa, já se enchendo da emoção simples que vê Deus em toda parte. O menino vinha tão feliz, tão orgulhoso de si, como se carregasse vivo o Menino Jesus em pessoa, que não se aguentou de tanta alegria: tropeçou no umbral da porta, caiu ainda tentando segurar a imagem, mas ela escapou de suas mãos e bateu no chão com força. Por sorte era forte e a queda foi curta, quebrou só a pontinha do dedo de uma das mãos. Coisa à toa. O povo se assustou, mas Padre Antonino estava lá e acalmou a gente toda: calma, pessoal, que Deus não se aflige com coisa pequena não. Desde esse dia João encafifou, que é que seria mesmo importante para Deus? Nem batismo, nem ponta de dedo de santa, nada disso O incomodava... Padre Antonino bem que tentava se explicar, mas João não entendia.
Menino desajeitado que era, por causa da força das coisas que andavam por dentro dele, João seguia crescendo com os olhos espichados para a estrada. Como agora que já era homem e olhava a estrada que escorregava pela janela do ônibus mal cheiroso.
Já estavam na Bahia há algum tempo, quando a paisagem começou a mudar. Era o fim do sertão. João se encheu de uma emoção nova, começava a ver um mundo diferente pela primeira vez em toda sua vida. Lembrou-se outra vez do dia em que saíra à pé à procura desse fim, da professora dizendo que era preciso ir de carro... E agora, de dentro do ônibus, começava a ver a mudança nas plantas, no relevo que se acidentava mais, no verde que era mais constante. João sorria para o mundo novo. Não tirava os olhos da janela e nem o sorriso do rosto. Não se aguentando de tanta alegria, virou-se para sua companheira de viagem que ainda tinha os olhos colados na bíblia:
– Olha aqui na janela, olha como é bonito!
A mulher olhou sem vontade para a janela e franziu os olhos por causa do sol. Fez um muxoxo sem jeito e respondeu:
– Esse sol me cansa a vista, não consigo ver nada lá fora. Mas já sei, é só mato e uma ou outra tapera mais pobre ainda que as da minha terra.
– Não, não é não. É tudo muito diferente de nossa terra, dona. As árvores aqui estão mais verdes, até o cheiro é diferente, os pássaros também são outros, o sertão já ficou para trás, agora é outra coisa, é outro mundo mesmo, dona, olha, olha com calma.
Ela virou-se outra vez para a janela e fez sombra para os olhos com as próprias mãos. Respirou com força, tentando em vão sentir o cheiro novo.
– É nada não. É só o mesmo mundão velho de sol e pobreza. Parece que você é um rapaz muito sonhador.
João olhou para ela incrédulo e quis insistir, não era possível não perceber a beleza que ele via e cheirava. Mas conformou-se, deixou-a continuar a leitura e voltou o olhar para a janela. Cada árvore ou planta diferente que surgia ele percebia, pois tinha crescido com os olhos fixos no mundo que o cercava, conhecia cada palmo de terra em torno do terreno dos pais, conhecia cada planta, cada bicho, cada pássaro, cada cheiro. E sabia, tinha certeza, de que tudo o que conhecia tinha ficado para trás. Gostaria de percorrer a pé a estrada e ver de perto cada novidade que encontrasse. Mas queria mais era seguir com pressa na viagem, chegar a São Paulo, e então se contentava com o olhar distante através da janela.
A vizinha de poltrona, por sua vez, não conseguia mais se concentrar na leitura. Rapaz estranho, pensava ela, alegria tão grande por sentir um cheiro novo no ar. Será que ele nunca tinha sofrido, não tinha nunca sentido o gosto amargo da vida? Entristeceu-se de repente pensando em tudo por que já tinha passado nessa vida. Que alegria era aquela daquele moço, que alegria era aquela que ela não era capaz de sentir?
– Moço, como é seu nome?
– João. E o seu?
– Marluce.
– Muito prazer. – João disse estendendo a mão para ela, como se acabassem de se conhecer. Ela correspondeu, sorrindo sem jeito.
– Você é um moço muito diferente, sabe? Fico pensando em o que é que te deixa tão alegre olhando por essa janela suja de poeira.
– Gosto de ver as coisas do mundo, principalmente as que nunca vi antes. Isso me deixa alegre.
João sorria e seu rosto parecia o de um menino. Marluce não entendeu, mas sorriu também. Por dentro se contraiu, pensando que o moço ia sofrer, e muito, na cidade de pedra. Mas não disse mais nada. Era assim que as pessoas costumavam lidar com João: tentavam mostrar a ele o mundo que chamavam de real, mas depois entendiam que não tinha jeito, que João tinha um jeito próprio de ver as coisas, e que ninguém conseguiria mudar isso, aí então desistiam, davam de ombros. Ou até gostavam. Clarinha se apaixonou, a professora se encheu de ternuras, Padre Antonino se aproximou. Teve a menina Dolores que fez o diabo para conquistá-lo, encantada que ficou com o desajeito de João – mas ele nem percebeu. Em casa, a mãe se preocupava, o pai se enervava, Lindalva o protegia, os irmãos não se importavam. Quando ele ficava tempo demais olhando pela janela, a mãe chamava, vem menino, vem brincar com seus irmãos, sai dessa janela que assim você acaba doente. Às vezes ele ia, saía lá fora e ia correr com os irmãos, outras vezes, não: quando o que estava imaginando estava bom demais, fingia que não escutava a mãe e continuava a olhar o longe que nunca alcançava. Como na tarde carregada de nuvens em que ficou por mais de três horas parado na mesma posição, planejando seu futuro. Foi nesta tarde que decidiu que quando completasse dezoito anos ia pegar o ônibus para São Paulo. A partir desse dia, juntou todo o dinheiro que pingou em suas mãos para que, quando fosse o tempo, pudesse comprar a passagem; haveria de dar, pois faltavam ainda oito anos. Foi também nessa tarde que planejou morar no mais alto do mais alto dos prédios. Muitos anos mais tarde, imaginou que de lá veria Clarinha no batente da porta.
João, ainda pensando naquela tarde que já ia longe na memória, compreendeu que agora cumpria seu destino. Desenhava o destino como quem crava na madeira uma imagem com a ponta do facão. João, com o olhar perdido na vastidão lá de fora, tinha o corpo bem colocado na poltrona do ônibus e caminhava com ele rumo ao futuro que tinha planejado. E João se confundia entre o planejado e o desejado, entre o menino que foi e o que queria ser, entre os rumos que cumpria depois de tê-los traçado e os pedidos que fazia para que assim fosse. É que João sentia o medo que chegava sorrateiro, talvez entrando na fresta aberta pelo que lhe dizia sua companheira de viagem. São Paulo, a cidade iluminada e grande, a cidade que tinha atraído para si todos os sonhos de João, que não vivia um dia sem pensar no que sonhava, a cidade que talvez não fosse como ele pensava. Mas não dava muito espaço para o medo não, e logo tampava a fresta aberta com a alegria das coisas todas que imaginava. E de novo estava no topo mais alto, e de novo buscava Clarinha.
Mas João pensava também nas coisas que queria fazer. Precisava de trabalho e de estudo. O trabalho não escolhia não, podia ser qualquer um que lhe desse sustento e o permitisse guardar um pouco para o casamento e para a viagem de busca da noiva. Mas o estudo era diferente, queria escolher para não ser levado pela vida. João queria ser construtor de estradas para fazer mais e mais caminhos por esse mundo todo. João gostava era de sair de onde estava e conhecer o diferente. E então talvez até São Paulo não fosse o seu destino, não o destino final.
Mas o que poderia ser o final do destino de alguém, se a vida é incerta e aberta e nova a cada curva da estrada? Era assim, entre um pensamento e outro, que ele seguia viagem no ônibus cada vez mais sujo e encardido da poeira que ainda entrava. O sol estava alto no meio do céu quando pararam para almoço. Cruzavam ainda o estado da Bahia, que era grande como o quê. João desceu do ônibus sozinho, Marluce ajeitava as bolsas antes de sair. Desceu aliviado, que não queria conversa. Queria andar um pouco em torno do restaurante, que era sujo e antigo como aqueles de seu sertão velho. Mas sentia bem o cheiro novo do clima, procurava aqui e ali um pássaro desconhecido e quem sabe até um animalzinho que passasse rasteiro por perto. João gostava das coisas vivas do mundo e não imaginava que em São Paulo a vida animal e vegetal tinham que encontrar buracos por onde surgir em meio ao cimento. Marluce tinha dito pedra – uma cidade de pedra onde qualquer bicho deve estar sempre escondido ou puxado pela coleira. João não imaginava que as coisas tão queridas de seu mundo velho poderiam não caber no mundo novo. E nem desconfiava de que a mudança vem sempre acompanhada de uma pontada na carne.
Mas João era assim: com o que não gostava, não se preocupava. Ah, sempre era possível seguir em frente e retraçar o rumo do que não estivesse direito. Ele tinha esperança. E isso fazia seu rosto jovem parecer mais jovem ainda, quase tingido da beleza que tinha quando era criança e se entregava às brincadeiras na terra vermelha do quintal. E foi bem na frente do ônibus, olhando o mato à procura de alguma vida, que João se lembrou do dia em que seu irmão Firmino tinha pegado uma cobra grande, sem medo nenhum. Firmino era valente e não temia a natureza; era sempre o guia quando saíam pelo mato em brincadeira e aventura. Naquele dia tinham saído os três meninos juntos, as meninas estavam com Lindalva, os pais na lida da roça. Caminharam pela estrada por mais de meia hora e entraram no mato que não era muito, só um chumaço ou outro entre as árvores cansadas do sol. Se sentaram no chão à espera de algum bicho, os potes de vidro na mão para segurar a presa. Esperavam um bichinho qualquer, um lagarto, um sapo, quem sabe um gambá, mas não esperavam a cobra grande e barulhenta que de repente apontou entre as duas árvores próximas a Firmino. Ele se levantou de um susto sem olhar para o rosto lívido dos irmãos que o chamavam, tentando fazê-lo voltar para trás e correr com eles para casa. Firmino não escutava, hipnotizado pela cobra pronta para o ataque. Abriu o pote grande que tinha consigo e se aproximou do animal, segurando o vidro com a boca aberta em sua direção. Quando a serpente se jogou em direção ao menino, caiu bem dentro do pote de vidro que ele tratou de fechar rapidamente. E foi com o troféu nas mãos que correu aos gritos atrás de João e Emanuel, que já quase alcançavam a casa gritando por Lindalva.
João ali de pé, começando a sentir fome e a pensar em almoçar, sorriu à lembrança da irmã apavorada com o vidro nas mãos, olhando para Firmino sem acreditar no que o menino tinha feito. João, moleque de seis ou sete anos, passado o medo, sentiu foi um orgulho imenso do irmão maior e a vontade de ser como ele, sem sombra de medo. E foi assim sem medo que entrou no restaurante e pediu seu prato, que hoje era arroz, feijão, carne cozida com batata e tomate fresco. Comeu com gosto e não percebeu Marluce logo na mesa ao lado, junto a uma família que viajava nos bancos traseiros do ônibus, maldizendo a comida e o lugar em que estavam.
Mais tarde, olhando pela janela o entardecer e sentindo o cheiro da noite a penetrar o ônibus, João se perdeu nas lembranças de Clarinha. O sorriso dela, tão bonito, bonito como só o que é vivo e fresco pode ser. Sorriso de Clarinha era um sossego no coração. João se sossegava na sombra do sorriso de Clarinha enquanto o ônibus se balançava nos buracos da estrada. A estrada era velha e mal cuidada e João não percebia, feliz como estava por ser conduzido por ela. Era a estrada que o levava em direção ao sonho. João sonhava e agora fazia da vida, o sonho. A viagem para São Paulo não se dava entre os buracos, se dava era bem no peito de João. Estava ainda perdido assim, com a imagem de Clarinha a lhe preencher toda a visão, quando Marluce o cutucou, chamando:
– Moço, como é mesmo seu nome? É que já não me lembro bem do que escuto.
– É João.
– João. Você é diferente, João. Acho que você não vai gostar de São Paulo não.
João sorriu e não disfarçou o enfaro com aquela conversa repetida. Só quis foi falar da professora:
– Lá na minha cidade eu tinha uma professora que me ensinava as coisas todas. Professora Paulina. Ela me contou que o mundo é grande e que tem lugar para tudo nele. Que as estradas levam para todos os lugares, mas que é preciso pegar o carro, porque nossos pés não aguentam as distâncias, de tão grandes. Disse também que, para onde eu quisesse ir, eu encontrava a estrada. É por isso que estou indo, porque tem a estrada e o ônibus, e eu tenho vontade de ver o mundo todo. E eu vou gostar de tudo, porque gosto de tudo que ainda não vi.
A mulher ficou calada pensando. O moço era mesmo ruim das ideias, mas falava bonito e ela não sabia mais como desmenti-lo. Até que falou, como num susto de descoberta da verdade:
– Mas e se você descobrir que o que tem lá você já viu antes? Que tudo nesse mundo é sempre a mesma coisa, o mesmo sofrimento que vai matando a gente, todo dia, em qualquer lugar?
– Mas isso é que não é. É só olhar pela janela para ver que o mundo muda, a cada passo da estrada o mundo muda, é só olhar – João apontava a janela, quase forçando-a a olhar para fora. Mas ela, se olhava, era de soslaio e quase não via nada; ou melhor, via só a poeira que sujava o ônibus e endurecia seu cabelo já duro e gasto pelo tempo; e só confirmava o que já sabia: o mundo era um só, em qualquer lugar, e o moço, coitado, tinha a cabeça frouxa de tanto pensar no que não há.
Marluce se calou, com a bíblia nas mãos, e fechou os olhos. Logo cochilava e, mais uma vez, o livro lhe caía das mãos. Desta vez João não o pegou. Deixou onde caiu, cansado que estava de repetir o que já tinha feito antes. João se lançava todo para o futuro, como um aventureiro que não carrega o peso do passado, mas apenas a ânsia de ver o ainda não visto. E João sorria sentindo o vento que lhe esfriava o rosto, porque pensava que o mundo era bonito. Bonito como o sorriso de Clarinha.
Adormeceu pensando que depois da próxima noite pisaria pela primeira vez o chão de São Paulo. A maior cidade do mundo. Marluce disse que não, que não era a maior. Mas João não tinha escutado. Era sim, São Paulo, a maior cidade do mundo.
Quando acordou de um sono partido, o dia amanhecia e o céu era todo um azul suave que coloria o ar da manhã. À medida que a manhã avançava e ônibus corria pela estrada, o ar ia mudando aos poucos, o vento ficava mais frio, a estrada fazia mais curvas. Lá para o meio do dia, João sentia o corpo tombar com o balanço mais forte do ônibus, que agora parecia um barco em alto mar, virando de um lado para o outro, subindo e descendo. João olhava pela da janela aberta e o que via inundava seu coração de alegria: a estrada era cheia de curvas e de subidas e descidas como nunca tinha visto antes. O mundo que conhecia era um plano sem fim, um chão reto e largo recheado sempre das mesmas pequenas plantas. Agora, não. Agora era um mundo retorcido e cheio de curvas e altos e baixos, uma beleza. A estrada estreita não dava espaço para que o ônibus saísse de seu exato rumo. Só o pensamento de João vagava por entre as pequenas trilhas que vez ou outra descobria na beira da estrada. Que pessoas viveriam por ali? João se perdia imaginando a vida miúda de gente como ele, entre as subidas da estrada. Numa curva muito longa, toda ela em descida muito forte, João viu uma família sentada numa pedra, à espera de alguém, de um outro ônibus qualquer, de uma carona. Era um homem velho, magro, com a barba por fazer e o olhar cansado, uma mulher mais velha ainda, o cabelo grisalho preso numa trança comprida, uma mulher mais jovem, só que com o ar ainda mais cansado do o da outra que devia ser sua mãe, e três crianças pequenas, também sentadas. João os viu por apenas um relance, mas o suficiente para guardá-los como num quadro em sua mente. As crianças, dois meninos e uma menina, pareciam também cansados, e João se perguntou sobre porque estavam tão parados, com um mundo todo por percorrer. João quase viu, mas era o que não queria ver e então fez seu pensamento fazer outras perguntas, mas quase viu a tristeza deles todos; e se tivesse saído do quase e se deixado invadir pelo que via, talvez devesse olhar para Marluce e pensar como ela: o mundo era sempre o mesmo, porque em toda parte se sofria igual. Mas João saiu de perto desse quase e se deixou levar pela curiosidade sobre como seria a casa deles e para onde estariam indo. Por certo era um passeio por perto, pois quase não tinham bagagem. Nem lhe ocorreu pensar que talvez a pouca bagagem fosse tudo o que tinham. Escutou foi um barulhinho de água ao longe e imaginou que alguma cachoeira se escondia por ali. Talvez. Ou talvez fosse só sua imaginação que criava todas as coisas boas desse mundo.
Quando o ônibus parou para o almoço, João desceu contente, à espreita do que poderia descobrir de novo. Estavam em Minas Gerais, já muito perto de São Paulo. Marluce saiu do ônibus atribulada e cansada da viagem e, pela primeira vez, despertou em João uma compaixão sincera. Por trás da antipatia que lhe causava o jeito duro com que ela insistia em ver no mundo só a feiúra da dor, ele conseguiu ver o peso da idade e do cansaço, a desesperança sofrida de quem da vida só tinha ganhado o mínimo. Enquanto segurava a bolsa e a observava vestir o casaco com dificuldade, João se enterneceu e a convidou para sentar com ele para o almoço. Marluce o olhou agradecida, porque realmente o peso da viagem longa já lhe pesava nos ombros, e ter alguém para conversar era já um tantinho de sossego. Sentaram-se numa mesa pequena, pediram o prato feito, que era o mais barato que encontraram. Tudo ali era mais caro do que nos outros pontos da estrada. Marluce explicou:
– É assim, moço, quanto mais vamos descendo, quanto mais perto de São Paulo estamos, mais caras as coisas vão ficando. Porque por aqui todo mundo pensa com a cabeça do dinheiro. Não é como lá no sertão, não, onde a gente ainda consegue pensar com a cabeça da amizade. Aqui é assim: cada um quer ganhar o seu dinheiro, e não importa se para isso é preciso tirar de alguém.
João de novo se impacientou com a companheira de viagem, mas ficou quieto, guardando um silêncio que o sossegava. Pensou em Marluce como uma senhora que não teve sorte na vida. E pensou que não desistiria nunca de procurar por sua sorte.
Voltaram para o ônibus já sentindo a proximidade do fim da viagem. E João sentiu de repente uma pontada no coração. Estava longe, muito longe de casa. Passara já duas noites no ônibus e duas noites poderiam ser uma vida. João não entendia, mas sentia o peso da distância alongando o tempo dentro dele. Parecia que uma vida inteira tinha se passado desde que entrara naquela viagem deixando para trás as pessoas todas que conhecia no mundo. E o próprio mundo em que tinha vivido cada um de seus dias tinha ficado na poeira da estrada que o levava para a frente. E na frente apenas procurava aquilo que tinha preenchido sua vida de desejo desde sempre: o mundo novo. Ah, o mundo novo que o salvaria da terra vermelha em fogo que lhe queimava os olhos que não desgrudavam da estrada. A professora tinha dito: vai, João, que o mundo é grande. Grande como quê... E João quase sabia que pequeno era ele mesmo e que para um ser pequeno um mundo grande pode ser grande demais. Mas aí lançava rápido o olhar para o rumo da estrada e parecia que ainda estava lá, na janela de seu quarto. João e a janela.
Lembrou-se então do dia em que Clarinha chegou correndo como criança perdida e parou sorrindo em frente à janela do quarto. Ele, num instante, pulou para fora e a abraçou limpando o suor que lhe fazia brilhar o rosto ainda mais, que já seu sorriso o fazia brilhar. Perguntou sorrindo o que a trazia assim, nessa pressa toda. E ela contou: João, vem ver, chegou um circo na cidade, parou na beira da estrada e está lá, montando barracas, vem! Ela falava e sorria e chamava e João se alegrou também. Voltaram juntos pela estrada e só pararam em frente à festa que já se armava em torno das lonas e dos bichos e dos artistas. O povo todo da cidade ia chegando, que um movimento desses era muito raro por lá. João chamou Clarinha para ficarem um pouco mais longe e se sentarem numa pedra grande, do outro lado da estrada. Ela viu logo a tristeza nos olhos dele, mas não entendeu.
– João, você não gostou não? É tão bonito esse povo todo aqui, curioso para ver a novidade, e você triste assim...
E João mesmo não entendia a tristeza que só fazia crescer em seu peito. Era como uma planta estranha e desconhecida que de repente surgia em terreno preparado para se plantar outra coisa, mais bela. No lugar da alegria que Clarinha procurava, a tristeza estranha que não se escondia mais. Os olhos dele brilhavam na dor de não poder se alegrar. Até que pôde dizer:
– Eles vêm e logo vão embora outra vez. Vivem na estrada, e nós aqui estamos presos a essa terra queimada pelo sol que não se cansa. E o povo se alegra e o circo chega e vai sem levar ninguém com ele. A cidade fica parada e se alegra ainda na lembrança da novidade que veio e foi. Clarinha, eu não quero isso não. Não quero passar a vida parado esperando o circo que vem e vai. Eu quero ir, Clarinha.
E agora era ela quem se entristecia, porque sentia que João um dia ia mesmo embora e ela ficaria com seu sonho de passar a vida toda com ele e em cada circo que chegasse procuraria por ele. Mas João não voltaria. Não voltaria para buscá-la – ela sentia assim e quando dizia isso a ele, e ele negava, ela mais ainda se entristecia por ver que nem ele sabia que não voltaria.
E o que João sentia agora na janela do ônibus era a tristeza mais funda de saber que cada pessoa tinha um sonho diferente da outra, e que fazer juntar dois sonhos era coisa das mais impossíveis. E João sabia que Clarinha estava longe. E que quando fosse buscar por ela, talvez não a encontrasse. E ele quase quis voltar e deixar para trás a estrada que tinha sido seu desejo, e só viver no desejo de Clarinha, que, afinal, ele também sabia sentir. Mas seu coração ainda o empurrava para frente e, naquele instante, Clarinha ficou para trás. João sentiu uma dureza nova que devia vir do minério que cercava a estrada. Pedra e montanha, e João tampando com força os buracos que lhe surgiam na alma.
Era preciso seguir, e a estrada ainda convidava. João era um pássaro livre. E as asas eram seu coração que não queria se prender. E João já sorria outra vez respirando o ar da montanha. O sol caía enquanto a tarde passava lenta no correr da estrada. O destino da viagem se aproximava e João se alegrava como Clarinha naquela tarde guardada na memória.
Quando o sol se pôs, João pensou mais uma vez que quando visse a luz do dia outra vez, estaria em São Paulo, a maior cidade do mundo. Devia ser. A maior. João sabia, a maior. Se não fosse... Mas João sabia. E olhava sem dó para os últimos sinais da luz que se escondia atrás da montanha. E pensava nos prédios altos e pensava na janela do mais alto de todos de onde poderia ver Clarinha. Que mesmo que ela se perdesse dele para sempre, da última janela do último prédio ele ainda a veria. Porque Clarinha também era seu sonho.
E João sonhava. E sonhar cansava, além de alegrar. Mas João não deixava nunca o medo entrar completamente, medo que sentia era só insinuado, de esguelha. E seguia. Seguia a viagem que era o sonho maior, viagem para o mundo novo. O novo mundo – e João nem sabia que um dia essa terra toda tinha sido chamada de o Novo Mundo.
– Moço! João! Escuta aqui, moço! – Marluce o chamava ansiosa, João não ouvia, perdido que estava. Mas ela insistia – Moço!
Quando ele desviou o olhar da janela aberta e empoeirada, viu a companheira de viagem olhando-o assustada.
– Que foi? Que foi que aconteceu?
– Foi nada, estava só chamando para passar melhor o tempo, mas o moço não ouvia, pensei que passava mal, adoecido de tanto olhar essa janela.
João quase sorriu, mas guardou-se.
– E o que era para falar?
– É nada não, que agora até perdi o rumo do pensamento. O moço é esquisito demais.
João sentiu tremer a boca, numa mistura de raiva e susto. Medo?
Esquisito. Era mesmo esquisito e já tinha ouvido isso umas tantas vezes pela vida afora. Mas agora ali, só sentado no ônibus que o levava para São Paulo, quase sem falar. Que esquisitice era essa que transparecia até na rigidez do corpo parado na cadeira do ônibus?
– Esquisito como, dona?
E desta vez foi Marluce quem quis sorrir e não se deixou. Nem sabia como explicar.
– Esquisito assim de esquisitice mesmo. O moço não é como os outros.
– E como é que são os outros?
– Nem sei dizer. Mas sei que não ficam tanto tempo assim com os olhos colados numa janela.
E João pensou que aquela viagem não era nada. Que ele tinha passado era a vida toda lançado numa janela. E que, se isso era esquisito, então era porque ele era mesmo cheio de esquisitice.
– Mas por que isso é esquisito?
– Parece que o moço fica o tempo todo sonhando, vendo o que não existe.
– E o que é que não existe e que a dona pensa que eu vejo?
– Isso só o moço mesmo é quem pode dizer. É o quê, que você tanto vê?
– Vejo nada não, só o que tem mesmo ali, do outro lado da janela. Agora mesmo, antes da luz do sol sumir toda, eu estava vendo o contorno da montanha que desapareceu bem devagar no meio da escuridão. Estava bonito e não era sonho não.
– É sonho sim, que nada era bonito aí fora. É só um mundo velho e cheio de poeira.
Então João desviou os olhos de Marluce e continuou seu caminho, com o prazer do vento no rosto. Marluce se agarrou ao terço que tinha nas mãos e começou a rezar num murmurinho muito baixo. João não se irritou, até gostava da ladainha que o fazia lembrar-se das procissões em que seguia com a mãe pelas ruas da cidade.
E foi ouvindo Marluce, com a imagem da mãe preenchendo-lhe o pensamento, que adormeceu antes de ver a lua cheia. Marluce rezava sem olhar para o companheiro que agora lhe parecia mais um demônio do que qualquer outra coisa – rezava para se proteger do que não entendia.
Para Marluce o mundo era todo um só, e todo muito bem entendido. Para aquele moço João, que tanto a perturbava, o mundo parecia não ser nada além de um emaranhado de sensações que se renovavam sem parar.
Quando, mais tarde, João acordou, era Marluce quem agora dormia e quase roncava. João sorriu e não estava mais irritado. Alegrava-se, e muito, pois sabia que não demorariam a chegar ao destino. Destino... ele se agarrou nessa palavra como se dela pudesse vir todo o entendimento que nunca conseguia alcançar. Tentava agora entender: o destino era o fruto do que cada um construía, dia a dia, ou era antes a força intensa que levava cada a um a um rumo próprio? O destino era o fruto ou a raiz da árvore que era a vida de cada pessoa? E João não sabia se construía seu destino ou se era construído por um destino que o ultrapassava. E João nem sabia se era preciso pensar em Deus.
E se lembrava de Padre Antonino e das coisas que ele lhe falava. E se lembrou de que lhe dissera um dia que tinha a alma pura e que, por ser pura, já descansava em Deus. Mas não entendia o que o Padre queria dizer com aquilo. Então não eram todas as almas iguais à dele? Não eram todas as pessoas iguais e pequenas diante de Deus? E João, sem saber se era preciso, se perdia pensando em Deus, e não entendendo Deus. Mas sossegava porque não precisava de muito entendimento não. Era suave e se deixava deslizar para a janela outra vez.
A lua iluminava a estrada mais do que os faróis do ônibus. João via os contornos das montanhas que agora pareciam mais baixas. E de repente sentiu frio, e isso era novo. Vestiu a blusa grossa que tinha comprado especialmente para a viagem. O contato do tecido com seus braços protegendo-o do frio que vinha no vento foi gostoso como um abraço de Clarinha. Ah, Clarinha voltava a seu pensamento cada vez mais bonita, vai ver que era a beleza da saudade que já começava a pressionar por dentro o peito alegre de João. Mas ele se deixou levar de novo pela janela de onde vinha o frio e por onde escorregava o sorriso dela.
De tanto olhar acabou dormindo outra vez, para agora só despertar no final da viagem.
São Paulo.

II

São Paulo, a maior cidade do mundo. João pisou em seu solo com a alegria guardada pela vida toda. De tão alegre, estava sério. Era uma alegria muito séria. Não era daquelas alegrias que se pode jogar fora numa risada. João pisou no chão de São Paulo com alegria séria. Respirou fundo e olhou em torno. Burburinho de vozes, pessoas amontoadas procurando bagagens e parentes e consolo. Vendedores de água passando apressados. Malas em montes pelo chão, crianças correndo no meio delas. Nenhum horizonte.
– Vamos, rapaz, pega sua mala, vamos.
João olhou sem pressa para o motorista que o apressava a pegar a mala, era a última do bagageiro, todos já tinham procurado seu caminho. João pensou em Marluce e ressentiu-se de não ter se despedido. Pegou a mala pequena, mas nova, e saiu andando pela rodoviária ainda sem pressa e sem medo. Era cedo, tinha o dia todo para encontrar um lugar para dormir. Tomou um café com pão e continuou a andar. Olhava como quem comia com os olhos; tudo em torno lhe nutria o desejo. O burburinho não tinha fim e ele não conseguia entender nada do que falavam a sua volta, tal era o excesso e a mistura das conversas todas. Pensou em falar com alguém, mas se conteve querendo guardar por mais tempo inalterada a alegria que o conduzia por entre pessoas e bagagens. Ouvia sotaques variados, mas o mais comum era o seu mesmo, a fala nordestina que invadia São Paulo.
Quando resolveu sair da rodoviária, sentiu um sopro novo. O ar da cidade, a rua, carros, o céu pesado de nuvens, a quase chuva fina. Respirou com força e agora sorriu levemente. O ar úmido o consolava da secura do sertão. Era novo sim, Marluce, o ar era tão novo que lhe queimava o pulmão. Respirou com mais força e sentiu o cheiro de gás dos carros. Achou gostoso o cheiro novo. Fechou os olhos e imaginou o carro que um dia teria rodando em direção ao prédio mais alto de onde veria o mundo todo... e Clarinha...
Caminhou pelas ruas se esgueirando por entre pessoas que andavam rápido demais, segurando a mala junto ao corpo para não atingir os outros. Andava como um ninguém pelas ruas lotadas que não o viam. Mas João via. Via cada canto de coisa. E sorria ainda.
Depois de andar por mais de uma hora, parou diante de uma placa amarela e envelhecida: pensão familiar. Entrou. O pequeno saguão de piso de tábua corrida, marcado pelo tempo, cheirava a suor e poeira. Dois sofás de tecido verde rasgado nos cantos enchiam o ambiente. Num deles, uma senhora magra e cansada fazia tricô. No outro, um homem jovem fumava e a olhava. No balcão uma moça de pele branca demais sorria para ele com o batom vermelho reluzente.
– Está procurando quarto, meu bem?
Depois de alguns instantes absorto na visão do tricô que gerava um tecido cor de abacate, João se voltou para a moça do balcão e, tomado pela visão do batom, aproximou-se.
– Sua boca está muito vermelha, moça.
– Você gosta, meu bem?
Não, João não gostava, e pensava nos lábios suaves de Clarinha, mas queria o mundo todo, e no susto de de repente gostar do feio só por ser novo, respondeu sem pensar:
– É bonito demais, moça, mas me espanta.
A moça então passou o dedo indicador na própria boca e depois nos lábios de João.
– Prove, meu rei, e vai gostar ainda mais.
João passou a mão nos lábios e ainda viu o vermelho em seu dedo. Lambeu e gostou do gosto. E estava todo trêmulo, como quem vê o que não consegue reconhecer. O corpo de João sentia por dentro o medo que agora se enroscava ao desejo. Mulher maluca. Mulher de São Paulo.
– E então, vai querer um quarto?
– Quero sim. Custa quanto?
– Quarto sozinho com banheiro e café com pão de manhã é 20. Quarto sozinho sem banheiro é 15. Quarto com mais um é 12. E quarto com mais dois é 10.
– Quero o de 10. Tem o café?
– Tem sim, e o banheiro fica no fundo do corredor.
– Tá certo. Como é seu nome, moça?
– É Maria do Socorro. Mas me chama de Méri, que é assim que eu gosto.
E João subiu a escada atrás de Méri, com os olhos em sua calça muito justa que deixava ver as marcas da calcinha. A blusa rosa choque também apertada deixava de fora parte dos seios. Quando abriu a porta do quarto e virou-se para João, eles se esbarraram e os seios dela tocaram o corpo de João que outra vez estremeceu por dentro. Ele segurou no batente da porta e olhou o quarto. Três camas com um espaço mínimo entre elas. Um guarda-roupa com três portas, uma delas vazia; as outras duas ocupadas e trancadas. Uma das camas estava vazia, com o colchão velho e duro exposto. E Méri saiu dizendo:
– Vou buscar toalha e roupa de cama e sua chave do armário.
João pôs a mala no chão e foi até a pequena janela na parede do fundo, entre uma cama e outra. Lá fora, as ruas por onde tinha andado, e o céu ainda pesado segurando a chuva. Méri voltou e colocou o lençol na cama vazia, a do meio. João se voltou para o quarto e, escorado de costas na janela, ficou vendo a moça se movimentar. Ficou vendo o corpo da moça se movimentar. E seu corpo se movimentava por dentro. E tudo era novo. E de tudo João ainda gostava. E o medo, se mexia com ele, não o assombrava. E quando Méri terminou de arrumar a cama, se aproximou dele para entregar a toalha.
– Não quer provar mais um pouco do batom, meu bem?
João tremeu mais e pensou em Clarinha e pensou na vida nova e pensou em São Paulo e pensou no futuro e teve sede de viver e encostou levemente os lábios no batom vermelho que gritava. E não entendeu quando a moça disse:
– Eu tenho um quarto só meu. À noite estou lá; você pode pagar quando arranjar emprego.
– Pagar?
Méri riu da cara de bobo do moço. Mas ele era bonito e tinha a boca quente e um corpo que parecia ter que aprender tudo. Sorriu mordendo os lábios:
– Não se apoquente não. Para você vou fazer de graça, até cansar. Só não pode vir na noite que tiver cliente com pagamento – e de novo encostou os lábios na boca de João, e dessa vez beijou com força – se quiser tomar banho aproveita que é cedo, o pessoal ainda não veio do trabalho e o banheiro está limpo.
Deixou João sozinho no quarto. Depois de alguns instantes, voltou para dizer que seu quarto era o único que tinha a porta pintada de rosa. João sentou-se na cama, ainda tremendo todo. As ideias todas embaralhadas na cabeça. Veio durante toda a viagem pensando na cidade, nos carros, no trabalho. Não pensou nunca sobre as pessoas; menos ainda sobre as mulheres. Méri parecia um furacão arrancando-o do chão. Tão diferente de Clarinha. E João então entendeu que não sabia nada de mulher e que nunca tinha sentido essa tremedeira antes. Tinha gostado de Miroca. Gostava de Clarinha. Namorada. Tinha andado de mãos dadas com ela, e beijado sua boca, e abraçado seu corpo. Mas era só isso. Nunca tinha ainda conhecido um corpo de mulher.
Com a cabeça rodando e o corpo tremendo e querendo, abriu a mala sobre a cama e tirou uma roupa limpa. Arrumou seu armário com calma, cuidando de fazer passar a confusão de sensações. O armário tinha duas gavetas pequenas e três cabides velhos. Era o suficiente para suas coisas, tão poucas. Pendurou as calças. Guardou as camisas, a bermuda e as cuecas nas gavetas. Por cima da gaveta mais alta deixou as coisinhas que tinha trazido como lembrança: um retrato de Clarinha, um caderno dado pela professora Paulina, o tercinho dado pelo padre, o lenço que a mãe comprara de presente para a viagem, e mais os bilhetes de Lindalva, de Clarinha e da professora. Deixou lá também os documentos e o pouco dinheiro que tinha. Trancou a porta e foi para o banho, que a poeira da estrada lhe pesava o rosto. Da porta do quarto até o banheiro, tinha que atravessar o corredor comprido. Quase no final do corredor, viu a porta rosa, entreaberta. Passou sem desviar o olhar da porta do banheiro e nem viu se Méri estava lá dentro. Mas agora sabia onde era o quarto e não conseguiria mais deixar de pensar nisso. Dessa vez, porém, passou direto e fechou-se no banheiro pequeno e abafado. Mas estava limpo, como ela tinha dito. Mais tarde, quando todos chegassem do trabalho, rapidamente não estaria mais assim.
João abriu a torneira e quase se queimou com a água. Era a primeira vez em sua vida que tomava um banho quente. Depois de alguns minutos mexendo na torneira, conseguiu esfriar um pouco a água, deixando-a morna. E então molhou o corpo inteiro. E foi muito bom, bom como um carinho que lhe afagasse cada canto da pele ressequida pela poeira. João ensaboou-se sem fechar a torneira e viu a água marrom que saia de seu corpo. Tocou o corpo inteiro, ainda assustado com a revolução causada por Méri. Mas a água e a espuma foram aos poucos acalmando-o, até que nada restasse endurecido. O corpo se aquietava e se adequava à mansidão da água morna. E João se lembrou do banho em sua casa. Água gelada e pouca, gotas esparsas que obrigavam o banho a ser demorado, mesmo nos poucos dias frios que às vezes vinham no fim de junho, quando chovia um pouco e o vento e a umidade faziam o calor ceder. E João gostava do frio que sentia lá no sertão, porque era raro e, por isso, novo. E João queria o novo, sempre. E quando sentia frio no chuveiro, gritava e pulava sob a água e o que era dor se transformava em brincadeira. João não se queixava. De nada. Nunca.
Nem agora, sob a água morna, se lamentava do chuveiro gelado de sua casa. Só por um instante pensou em como a mãe gostaria de um banho assim quentinho e se prometeu que levaria para ela um chuveiro elétrico e mandaria sempre o dinheiro para a conta de luz. E se prometeu que em sua casa com Clarinha haveria de ter também o chuveiro quente e que, quem sabe, até poderia um dia tomar um banho com ela. Mas agora pensou foi em ensaboar o corpo de Méri que parecia pedir por isso; era preciso apagar o vulcão. Mas pensar isso reacendeu seu próprio vulcão e João se inquietou outra vez e desligou o chuveiro. Enxugou o corpo agora limpo e fresco, vestiu a roupa limpa e voltou para o quarto. Deixou a roupa suja na cesta grande ao lado da porta, Méri tinha dito que lavava as roupas, mas não passava; quem quisesse passar, podia usar o ferro, e pagava um tanto a mais pela energia. João não precisava de roupa passada, só no dia em que fosse procurar trabalho. Deitou-se na cama e pôs o braço dobrado sobre o rosto.
Seus pensamentos corriam soltos entre alegres e apreensivos. Estava em São Paulo. Tinha andado pelas ruas cheias de gente, por entre os prédios grandes; tinha atravessado ruas por entre os carros. Tinha visto os ônibus e uma estação do metrô; tinha visto gente de todo tipo. E estava agora ali deitado na cama do meio de um quarto de pensão, sabe-se lá em que lugar da cidade. João não sabia onde estava, sabia só que estava em São Paulo, e que esse era o sonho. O sonho.
E João não sabia se poderia ainda sonhar. E, se sonhasse, qual seria o sonho. Estava agora dentro do sonho da vida toda. E não entendia o que sentia. Era bom, sim, mas não era só isso. Era novo, tão novo, que ele não sabia ainda entender. Seu amor pela experiência o deixava todo aberto, todo à espera do que a vida, ou o Deus, guardasse para ele. Mas sentia também uma coisa estranha, que não conhecia bem. Era o medo?
Ah, João sentia medo e de repente se lembrava do medo nos olhos de Clarinha, e do quanto nunca tinha entendido aquilo antes. O medo era tão novo quanto a água quente do chuveiro ou a boca vermelha e sedenta de Méri. João se inquietava mais e mais e não sabia o que fazer com o que o perturbava por dentro. Queria tocar forte com os dedos no batom exagerado de Méri. Queria dizer para Clarinha que agora sabia o que era aquilo que lhe turvava os olhos. E para a mãe que agora sabia o que lia em seu rosto quando o olhava absorto na janela do quarto. João era estranho e a mãe temia por essa estranheza. E agora estranho lhe parecia o mundo. Mas nem por um instante desejou voltar. Estava era pinçado pelo medo. E o medo parecia ser ao mesmo tempo um convite e a negação do convite.
E então de repente sentiu fome. Pôs um dinheiro pouco no bolso, trancou o armário e a porta do quarto e desceu as escadas. Ainda do alto pôde ver o decote dela e o arrepio voltou ao corpo assustado. Ia passar calado pelo balcão, mas ela o chamou:
– Gostou do banho, meu rei?
Ele fez que sim com a cabeça, quase sorrindo sem querer. E ela o achou mais bonito ainda, com aquele cheiro de banho e aquela pele de criança que ele tinha, e até da vergonha que ele sentia ela gostou.
– João, você é bonito até demais, sabia disso?
E João parado olhando para ela na frente do balcão velho e descascado sentiu o calor subir de novo pelo corpo e fazer seu rosto pegar fogo. Méri riu.
– Fique assim não, meu bem, eu não quero te fazer mal. Quero fazer só bem para você, você não acredita não? – e passou o dedo indicador pela boca dele, e suas unhas também eram vermelhas e grandes, e João tremeu mais e saiu andando, dizendo baixo que ia sair para comer.
Méri tentou dizer que podia fazer um lanche para ele, mas o telefone tocou e ela não pôde segurá-lo mais. E ele saiu andando devagar, sem rumo, e até sem sentir a fome que o tinha feito sair. Mulher doida, aquela. Pensou em desistir de ficar na pensão, procurar outra, que na cidade toda devia ter uma porção daquelas. Mas sem pensar sorriu e sentiu que não, que queria mais era ficar perto dela até entender aquilo tudo que estava sentindo. João, do pouco que entendia do mundo, sabia de uma coisa: queria entender até o fim as coisas que sentia. E, depois de entender, seguir com elas até o fim. Foi assim com aquela vontade de ir embora do sertão. Sentia desde pequeno aquela inquietação, aquele amor pela janela e pela estrada, até que veio o jeito de entender que aquilo tudo era vontade de ir embora, conhecer a estrada e outros cantos, e veio a tentativa de sair andando e a compreensão de que não podia ser daquele jeito, que era preciso dinheiro e tempo, e veio a paciência de esperar o tempo e o dinheiro pouquinho que ia juntando até ter dezoito anos. E agora estava ali, com o desejo realizado nas mãos, e vinha então a inquietação nova. E era coisa de mulher. E João nunca tinha se preocupado com isso, tão ocupado tinha passado a vida planejando a viagem.
E veio a lembrança do dia em que Clarinha tinha dito que ele arranjaria outro amor em São Paulo, e que ela ficaria lá, feito boba, esperando por ele. E a resposta que ele tinha dado: eu gosto é só de você, tira essa coisa besta da cabeça. E agora ele estava ali, tomado pela presença da mulher doida como se fosse um laço. Mas era amor não, Clarinha, que quero ainda é buscar você para o nosso casamento, ele pensava em desassossego, alguma coisa já dizendo que o que tinha ficado para trás logo se perderia na poeira do tempo.
Entrou num restaurante pequeno a uns três quarteirões da pensão e pediu um prato feito. Comeu sem pressa, olhando a rua. Era quase noite e o movimento estava mais intenso, as pessoas saindo do trabalho, voltando para casa. Andavam com pressa, sempre com pressa, e João tinha aprendido a calma, que no sertão não adianta ter pressa, tudo corre em seu ritmo próprio e ninguém é capaz de interferir no tempo da natureza. O pai plantava e esperava, a mãe plantava com o pai e rezava pela chuva, e rezar é um jeito de esperar, João plantava e sonhava, e sonhar era também uma espera. Muito tinha esperado para estar ali, comendo sem pressa, olhando as ruas de São Paulo. Era bonito. Bonito porque cheio de gente e carros e prédios e casas. Mas o céu era pequeno e quase não se viam as estrelas, mesmo numa noite clara. João não entendia bem e ainda olhava para o céu, à procura dos brilhos todos da noite do sertão. E sem querer pensou que o céu de sua casa era mais bonito do que o céu de São Paulo. Mas logo pôs de lado a pontinha de inquietude que sentiu, pensando que do alto do prédio mais alto haveria de ser diferente.
Viu então passar um ônibus lotado e pensou que amanhã iria passear de ônibus para ver mais e mais ruas. Alegre por ter um plano para o dia seguinte, começou a andar de volta para a pensão. Fez um caminho longo, dando voltas para mais sentir as ruas da cidade; ou para retardar o momento de ver Méri outra vez. Passou por uma família, pai, mãe e três crianças, todos com roupas sujas e mal cheirosas, sentados no chão entre panos velhos e jornais, comendo uma comida feia e fria com as mãos. Parou diante deles sem saber como continuar a andar. Seus olhos molharam-se e teve ímpeto de sentar com eles e, ali daquele chão, ver o movimento da rua. Mas não se sentou. Apenas olhava-os com o coração comprimido e a impressão de que alguma coisa estava fora de lugar. O menino maior o olhava também, devia ter uns nove anos e João se lembrou do menino que era, colado em sonhos à janela do quarto. E tentou imaginar que sonhos aquele menino poderia ter ali. O menino então cutucou o pai, apontando João.
– Que é que tá olhando aqui?
– É nada não – e João saiu andando envergonhado por ter uma cama, um teto e um chuveiro quente.
Quando chegou na porta da pensão, hesitou um pouco antes de entrar. Méri era vida exuberante, e João estava tomado por uma tristeza estranha. Mas entrou e procurou por ela no balcão. O que viu foi uma mulher de cerca de cinquenta anos, cabelo grisalho preso em um coque, alta e grande. Olhou para ela inquieto.
– Você deve ser o rapaz que chegou hoje, não é? Minha filha me falou de você.
Filha? João se sentia cada vez mais perturbado pelas coisas que via e ouvia e que não encontravam lugar de repouso entre tudo o que já tinha aprendido na vida. O quarto da porta rosa seria próximo ao quarto da mãe? João pensava quase sem se entender, imagens vagas passavam por sua mente. A família na rua, mãe e filha vendendo o corpo numa pensão familiar, pessoas passando com pressa. E João não tinha pressa. E João queria entender. E procurar por seu caminho.
Depois de alguns segundos, olhou-a e até achou que se parecia com Méri.
– Sou eu sim, estou no quarto doze. Me chamo João, cheguei hoje em São Paulo.
– Seja bem-vindo, João. A casa é sua. Méri gostou muito de você.
João sentiu o rosto corar, abaixou o olhar e foi andando para o quarto. Encontrou a porta entreaberta, os outros deviam ter chegado. Abriu devagar e viu um homem alto e forte, mais velho do que ele, encostado na janela com um cigarro aceso nas mãos. Sentiu-se pequeno diante de homem tão grande, e uma sombra de medo o cobriu. O homem, no entanto, assim que o viu, abriu um sorriso largo e o chamou para dentro:
– Então você é nosso novo companheiro. Entre, venha, não fique avexado não. Meu nome é Tonico e estou aqui há um mês. Vim de longe, lá do sertão do Ceará.
João sentiu um alívio imenso e sorriu também:
– Eu também venho de lá, cheguei hoje cedo. Meu nome é João.
Entrou no quarto e sentou-se em sua cama, ainda olhando o homem alto e forte. Não parecia um nordestino não, era grande demais para isso. Tonico também o olhava, curioso, olhos muito vivos, corpo enérgico.
– Me diga, João, o que é que você veio procurar aqui em São Paulo?
– Eu vim trabalhar e conhecer essa cidade, a maior do mundo.
Tonico sorriu outra vez, sentindo a primeira pontada da ternura que viria a nutrir por aquele rapaz sem jeito e perdido no chão de São Paulo.
– É a maior nada, garoto. Devem ter umas três ou quatro maiores. A maior de todas é a Cidade do México. Eu já fui lá.
Os olhos de João brilharam como duas pequenas bolas de fogo. Cidade do México, ele nunca tinha nem ouvido falar, e o homem, ali na sua frente, já tinha ido lá. Conhecia o mundo e as estradas todas. Tonico continuou, vendo o interesse do moço:
– Já viajei muito por esse Brasil todo, e uma vez continuei na estrada quando acabaram as terras brasileiras. Eu estava trabalhando lá na floresta amazônica, e fui subindo, passando por outros países, Colômbia, Venezuela, depois entrei na América Central, vários paisinhos, umas titicas de nada, e fui subindo, até chegar no México. Ah, João, o México é bonito, eu gostei demais e quando cheguei na capital arranjei foi um namoro com uma mexicana muito bonita e fiquei por lá. Ela me ajudou a encontrar trabalho num restaurante e eu fui ficando. Morei lá pra mais de três anos. Quando minha morena deu de não me querer mais, arrumei minhas coisas e vim embora de volta pra minha terra. Cheguei de volta no Ceará ano passado. Fiquei lá fazendo roça com meu pai, mas depois vi que não aguentava não, que queria era ver o mundo de novo. Aí vim pra São Paulo. Já morei aqui outras vezes, já tive até família aqui. Tenho uma filhinha de dez anos, vou visitá-la amanhã. Quer vir comigo? Assim você vai conhecendo a cidade.
João já nem ouvia direito o que Tonico dizia. A quantidade de coisas novas que tinha ouvido naquele primeiro dia já não cabia mais dentro de si. Respondeu sem pensar que tinha pensado em andar de ônibus pela cidade. Tonico respondeu que estava ótimo assim, pois eles iam mesmo de ônibus, um ônibus e mais um pedaço de metrô, até a casa de Waldislânia.
Waldislânia. João ficou com esse nome rodando na cabeça. Era um nome grande e estranho demais para uma criança. Era tudo novo, grande e estranho. A cabeça de João girava como um carrossel, sem música, nem diversão. Deixou-se deitar na cama e nem viu quando Tonico desceu. Parece que cochilou por alguns minutos, despertou com um barulho no armário. Era o outro morador do quarto. Negro, muito magro, estava sem camisa, cabelo pingando água, toalha jogada no ombro, de costas procurando algo no armário. Quando se voltou para o interior do quarto, viu João o olhando. Fez um aceno com a cabeça, mas não disse nada. João também não conseguiu dizer nada, e continuou olhando-o curioso, mas sem coragem de enfrentar mais um acesso de novidades, não antes de pelo menos dormir uma noite na cama, depois daqueles dois dias na estrada.
Estavam ainda em silêncio quando Tonico voltou.
– Então já se conheceram, João e Bráulio – e voltando-se para João, em voz bem baixa – não se assuste com ele não; é calado assim, mas parece que não faz mal a ninguém.
Bráulio acabou de se vestir e desceu sem dizer nada. Tonico continuou:
– Ele trabalha o dia todo, chega tarde. Vai lá embaixo, come uma coisa no bar do lado, vê um pouquinho de televisão e vem dormir. De vez em quando, trabalha a noite toda. No domingo vai para o bar e, às vezes, não vem dormir, aparece na segunda de manhã, troca de roupa e vai para o trabalho. Deve arranjar uma namorada por aí.
João ouvia exausto, sem dizer nada.
– Parece que você precisa dormir, não é, João? Vou te deixar em paz.
Tonico já estava quase fechando a porta e João se sentou na cama com a vontade repentina de fazer uma pergunta:
– Tonico, volta aqui só um minuto.
Tonico voltou surpreso e curioso.
– Diga.
– Essa moça, a Méri. O que você acha dela?
– Hum, o moço não perde tempo. É bonita ela, não é, com aquele decote sempre deixando ver o que tem dentro, eu gosto muito dela, João. Mas por que você pergunta?
– Ela me disse pra ir no quarto dela, que pra mim ela faz de graça.
– Gostou de você, a danada. Vai lá rapaz, mas amanhã, que hoje, do jeito que está, não vai conseguir nada.
Tonico sorria malicioso e João não entendia nada de nada. Conseguir o quê, meu Deus? Vendo a expressão de espanto do moço, Tonico só disse ainda que descansasse, e que amanhã conversariam mais. Saiu do quarto e João se trocou. Arrumou a cama com cuidado e deitou-se para dormir. A cabeça rodava, as ideias não encontravam pouso, nada se encontrava com o que trazia da vida no sertão. Um dia só em São Paulo, e parecia toda uma vida. Uma vida nova que vinha desconcertar a vida vivida antes. Era como estar no meio do vendaval sem ter onde se segurar. João não sabia se estava feliz. Estava ali, pisando o chão com o qual sonhara por anos, e não se entendia. Não que se arrependesse, não era isso. Não voltaria para casa, sabia que estava em seu rumo nessa vida. Mas estava perdido e não se reconhecia. A lembrança da vida antiga estava muito longe, até o sorriso de Clarinha se perdia no vendaval. O que via de perto eram as coisas todas que vira e ouvira nesse dia, único dia, e que passavam voando perto de seus olhos e de seus ouvidos sem se deixar apanhar. Era um susto.
Acabou adormecendo antes que a cabeça encontrasse algum pouso. O cansaço do corpo gritava. Lá embaixo, Tonico conversava com Marileide, a mãe de Méri. Bráulio via televisão calado, outros moradores e hóspedes iam e vinham. Mais tarde a casa toda dormiu e o silêncio ajudou o descanso de João, que nesta noite sonhou com a imagem da porta rosa do quarto dela.
No dia seguinte acordou com os primeiros sinais da luz do sol, como sempre acontecia em sua casa. Abriu os olhos e, por um instante, apenas se alegrou. Amanhecia em São Paulo, que para ele ainda era a maior cidade do mundo. Bráulio não estava mais na cama, Tonico dormia. João deixou-se ficar por mais um tempo apenas olhando o teto sujo e deixando a imaginação correr. Até que voltou à sua mente a imagem da porta rosa no sonho, e logo a imagem de Méri. Imediatamente então, sentiu vontade de levantar. A inquietude da noite tinha passado e, saído da perturbação, João entrava agora em um estado de intensa curiosidade: queria ver de perto tudo o que tanto o incomodara ontem.
Foi ao banheiro rapidamente e desceu as escadas procurando por ela. Mas, outra vez, quem estava no balcão era a mãe.
– Bom dia – ele foi dizendo, muito decidido – a senhora me desculpe o mau jeito de ontem, eu estava muito cansado. Como a senhora se chama?
– Marileide. Não se desculpe não, eu vi mesmo que o moço não estava se aguentando em pé. Venha, venha tomar o café.
Levou-o então à copa que ficava no cômodo atrás do balcão, e que João não tinha visto ainda. Méri estava lá, servindo o café. Bráulio estava sentado em uma mesa no canto, sozinho. João pensou em sentar-se com ele, mas desistiu quando Méri o chamou para sentar-se com ela em uma mesa perto da porta da cozinha. Em cada mesa, uma xícara e um prato pequeno. Na mesa grande no canto do cômodo, uma garrafa de café, outra de leite, um cesto com pão e uma manteigueira. Mas a moça disse a ele que, se quisesse, poderia lhe preparar um ovo e eles podiam comer na cozinha, ninguém ia notar. João agradeceu e disse que não precisava, que preferia comer como todo mundo. Pegou seu café com leite e seu pão com manteiga e sentou-se à mesa com Méri. Ela o olhava.
– Tá ainda mais bonito hoje, João, com a cara alegre que faz gosto. Teve um sonho bonito, foi?
Ele só sorriu e não soube o que dizer. Não ia falar da porta de seu quarto em seu sonho. Não ia dizer que era alegre assim mesmo, mesmo sem razão de ser. Ou que se alegrava por estar em São Paulo, depois de ter planejado isso por muitos anos. E nem ia dizer que estava alegre porque ela estava ali com ele. De vez em quando, ela se levantava, quando alguém lhe pedia alguma coisa, mas logo voltava e puxava nova conversa com João. Até que ele perguntou o que estava querendo saber desde ontem:
– Seu pai também mora aqui, Méri?
– Não tenho pai não, João. Sou só com minha mãe nesse mundo. Cuidamos aqui da pensão, nós duas, e ela me ensinou a ganhar a vida.
João não entendeu o que ela quis dizer, mas pressentiu que era melhor não fazer mais perguntas. Estava ali quieto, olhando para ela, quando Tonico entrou fazendo barulho e se sentou com eles.
– Bom dia, meu rapaz, bom dia, Merizinha, dormiram bem? Eu dormi como uma pedra, me preparando para ir ver minha princesa. Você vem comigo, não é, João? – Ele assentiu com a cabeça, ainda que um pouco assustado com o jeito expansivo demais de Tonico. Mas queria ir, conhecer mais da cidade com alguém que conhece todos os seus caminhos, ver a filhinha dele, ver uma casa de família, uma vida comum naquela cidade enorme que era um mundo.
Méri se levantou e foi para a cozinha preparar mais café. Tonico olhou para João com malícia:
– E então, marcaram o encontro de hoje à noite?
João abaixou a cabeça, envergonhado.
– Não se avexe não, rapaz. Ela gostou de você, tem que aproveitar.
– É que nunca estive com mulher – João respondeu sentindo o rosto corar e olhando Tonico de soslaio – eu tenho uma namorada lá em minha cidade, Clarinha, e gosto dela e quero voltar para buscar ela uma dia, mas nós nunca...
– Nem precisa dizer, eu já estava desconfiado disso. Pois então, é por isso mesmo que você precisa de uma moça como Merizinha, que conhece tudo da arte e vai poder te ensinar. E, se gostou de você, vai ensinar melhor ainda.
– Mas e Clarinha? Não posso logo ir me deitando com uma mulher aqui, nem mesmo falei ainda com ela pelo telefone depois que cheguei, nem escrevi para ela ao menos um cartão.
– Mas João, uma coisa é diferente da outra. O que você aprender aqui, vai um dia poder ensinar pra sua Clarinha.
E João se chateava, mas era por perceber que Clarinha ia ficando cada vez mais longe em seus pensamentos. Parece que os fios todos que o ligavam à vida antiga estavam prestes a se romper. E João logo estaria perdido, lançado no mundo imenso e sem forma de São Paulo. E tudo seria novo, e tudo teria que ser construído desde as bases, e João não sabia como.
Tonico se levantou, chamando para irem logo, que a casa de Waldislânia era muito longe. Na porta da rua, Méri os alcançou e chamou por João. Ele se voltou e ela estava muito junto dele, quase roçando o decote em seu corpo sem sustentação.
– Vou te esperar essa noite, viu?
João abaixou o olhar e não respondeu. A moça em um instante percebeu o vermelho na face dele e o sem jeito de seu olhar. Entre admirada e satisfeita, continuou:
– João, meu bem, você é virgem? É isso, não é? Não se preocupe não – e levantou o rosto dele tocando de leve o queixo com seus dedos, e as unhas vermelhas ficaram muito perto do olhar de João, e o vermelho do rosto correu pelo corpo todo e João não se reconhecia – então, posso te esperar?
Ele fez que não com a cabeça e saiu andando, seguindo Tonico que caminhava devagar. A moça voltou para a copa sem se importar com a rejeição. Sabia que conseguiria, que um moço tão jovem e sem saber de nada não ia rejeitar seu oferecimento, precisava era de caprichar mais no batom e no decote, comprar um perfume novo, quem sabe deixar de presente na cama dele uma foto com um cartão. Mas logo desviou o pensamento ajeitando o café e os pães.
Tonico e João caminhavam para a estação do metrô. Quando desceram as escadas através do buraco no chão, João teve medo.
– Nós vamos descer para debaixo do chão, Tonico?
– Vamos! É bonito isso, não é, João? Vem, tenha medo não, é muito bom o metrô.
E João se perdia olhando o formigueiro de gente que entrava e saía com pressa, sem tempo de olhar para o lado, ou para o céu, ou mesmo de se perguntar se não era estranho andar debaixo da terra como as minhocas e as formigas. E então uma forte imagem veio vindo do fundo de sua infância, ele muito pequeno correndo com Firmino e Carlinho pelo mato, e de repente escutaram um choro muito alto, voltaram pelo mesmo caminho e encontraram Taninha, a irmã mais nova, pouco mais velha que João, caída em cima de um formigueiro, o pé torcido, não conseguia se levantar, e as formigas por todo o corpo dela; Firmino, que nunca teve medo de nada, tirou a camisa e foi com o pano espantando as formigas, e depois pôs a irmã no colo e a levou até a casa, e ele nem era muito maior do que ela, maior era mesmo a sua coragem e o seu jeito de fazer o que tinha que ser feito, sem se perder no pensamento. E João entendeu que ele não era como Firmino, que sua perdição vinha do de dentro dele e que a vida no mundo era ainda um sonho porque era o sonho que o fazia andar. E estava ainda parado no alto da escada, a alma toda voltada para o mato da infância, quando viu Tonico gritando por ele lá embaixo, já quase perdendo a paciência. Desceu correndo e o alcançou num instante. Compraram as passagens e andaram até o local onde pegariam o trem. E João espantado ainda com a gente toda que cabia ali no buraco do chão, e com o barulho quando um trem passava nas outras linhas – estavam em uma estação muito grande, onde passavam três linhas do metrô. E, depois do espanto, o que sempre o atingia era o gosto de estar ali, vendo o que nunca tinha nem imaginado, que lá na sua cidade ninguém nunca tinha lhe contado nada sobre os buracos do chão de São Paulo. E o gosto o tomava e ele sorria e Tonico também sorria pensando que esse menino era mesmo muito diferente.
Porque Méri tinha razão: João era virgem, no corpo e no olhar, e tudo o que via, para ele era novo, e ele não herdava do mundo o jeito de compreender as coisas, tinha que compreender tudo sozinho, a partir do de dentro dele.
E era assim, começando a entrever os jeitos de compreender São Paulo, que João seguia em pé no metrô lotado. Saíram do trem depois de uns quinze minutos de viagem e caminharam até um ponto de ônibus. E a cidade não acabava, o horizonte era sempre o mesmo mar de prédios. Lembrou-se por um instante de sua companheira de viagem dizendo que São Paulo era uma cidade de pedra. E era isso, cidade de pedra, mas João não se entristecia por isso, achava era bonito, pois passara a vida toda vendo sempre o mesmo terreiro diante de sua janela, o mesmo mato ralo onde brincava e sonhava, a mesma estrada vermelha, o mesmo sol que nunca se cansava. Ali em São Paulo, não. Olhando de longe, Marluce, era sim uma cidade de pedra, mas andando pelas ruas, era uma coisa nova atrás da outra, era gente que não tinha fim, eram cores, falas, tudo multiplicado por mil, tudo acontecendo ao mesmo tempo. E, se João se assustava, e às vezes parecia quase explodir de tão inchado por tudo de novo que entrava nele, logo absorvia o que via, e sorria e sabia que era isso mesmo o que tinha procurado.
Entraram no ônibus também lotado e seguiram nele por mais de uma hora. E a cidade não acabava, e o horizonte não mudava. Seguiram calados com o sol forte na cara e o cheiro quente de tanta gente junta. Depois de certo ponto do caminho, o ônibus começou a esvaziar e puderam se sentar. E Tonico então contou a história da filha. Tinha dez anos e sua mãe, Laurinda, era bonita e forte, e tinha sido sua mulher por mais de cinco anos. Nesse tempo Tonico tinha assentado o pé em São Paulo, pensando viver ali a vida toda. Foi morar com Laurinda, pensou que iam construir uma família. Tiveram Waldislânia, tinham trabalho, uma casinha boa, amigos, tudo correndo certo e bem. Até que Tonico conheceu um homem que vivia viajando pelo Brasil, trabalhando aqui e ali em grandes fazendas, consertando máquinas agrícolas, e o convidou para seguir com ele; precisava de um ajudante e assim Tonico poderia aprender o ofício. Tonico ficou dividido, porque sabia que Laurinda não ia querer essa vida, que ela gostava demais da tranquilidade que tinham, e do trabalho, e da casa, e dos vizinhos. E Tonico pensou que não tinha jeito, mas começou a entristecer, dia e noite pensando na proposta, dia e noite sonhando com a estrada, com os lugares novos que poderia conhecer, e depois pensava na filha que só tinha dois anos e a quem, se partisse, não veria crescer. Até que decidiu arriscar tudo. Foi embora com pouco mais do que a roupa do corpo. Deixou dinheiro para muitos meses, e sempre que podia, mandava mais. E voltava a São Paulo quando calhava de ter um trabalho por perto e a menina crescia e ele sempre partia outra vez. Quando ela tinha quase quatro anos ele seguiu para muito longe, e ficou aquele tempo grande no México e depois quase um ano com o pai. E agora já estava em São Paulo há um mês e ainda não tinha tido coragem de procurar Laurinda e a menina. Muitos anos tinham se passado, teve medo de que nem se lembrassem dele. Então, hoje, com João do seu lado, iria reencontrar a filha depois de mais de seis anos sem vê-la.
João ouvia calado, sentindo um peso no meio do peito, como se imaginasse que poderia acontecer uma coisa assim com ele também. O peso da distância que vai corroendo por dentro o que nos liga às pessoas.
Quando Tonico parou de falar, estavam os dois com o peso da tristeza no rosto. E a mesma vontade de conhecer coisas novas, e era por isso que Tonico tinha se afeiçoado ao garoto. E João então se distraiu olhando pela janela, como na viagem. A cidade agora mudava um pouco, não se via mais prédios, a não ser bem baixos, de dois ou três andares. E muitas casas simples, pequenos comércios que mais pareciam as vendas de sua cidade. O ar menos pesado, o trânsito menos barulhento, gente andando sem pressa pelas ruas. Estavam na periferia e o ar era como o de uma cidade pequena, e isso foi para João uma surpresa, e um motivo simples para mandar para longe a tristeza.
– Como é diferente aqui, Tonico.
– Aqui é a periferia, quer dizer que estamos muito longe do centro da cidade. Aqui é mais pobre e não tem todo o conforto da cidade. Mas é menos poluído e vemos mais o céu.
– E é mais calmo.
– Não se engane, não, João. Nada é calmo em São Paulo. Essa calmaria esconde um burburinho que não para. E tem muita gente ruim aí, onde a gente menos espera. Tem muita violência por aqui, muita droga, muita briga.
– E é por quê isso tudo, Tonico?
O homem sorriu da candura do menino, e não respondeu nada, que já estava na hora de descerem do ônibus.
– Vamos, deixa essa conversa para depois.
Andaram por cerca de quinze minutos até finalmente alcançar a casa de Laurinda. Ficava no alto de uma colina, era uma casa pequena, toda pintada de amarelo, até as janelas. Um amarelo já cansado pelo tempo, manchado pela fumaça, desbotado pelo sol. A casa não tinha campainha. Tonico atravessou o pequeno portão da rua e bateu na porta amarela. João seguia atrás.
Depois de alguns segundos uma voz de menina soou lá dentro:
– Quem é?
Tonico sentiu medo, o que nele era raro. Respondeu vacilante:
– É Antônio.
A menina não abriu e não respondeu nada por quase um minuto. Quando respondeu, a voz estava mais fraca e parecia ter medo também.
– Que Antônio?
– É seu pai.
Passaram-se mais alguns instantes antes de ouvirem o barulho da chave. Waldislânia abriu a porta devagar e encostou-se no umbral, ainda com a porta entreaberta. Ficou olhando fixamente para Tonico. A expressão era cansada, e talvez um tanto incrédula. Pai? Que pai, se nem se lembrava do rosto dele? Mas tinha aquela foto na mesinha da sala, e era mesmo muito parecida com esse homem aí, bem diante dela.
Tonico se ajoelhou bem em frente à menina, ficando de sua altura. Ela era miúda e o tamanho do homem a intimidava.
– Vem, filha, deixa eu te dar um abraço, que a última vez que fiz isso você tinha a metade do tamanho que tem agora. Vem aqui, vem.
A menina continuava parada olhando o rosto do homem, agora na altura de seus olhos. Não sentia vontade de abraçar, mas também não queria mandá-lo embora. Queria que a mãe estivesse em casa.
João, que tinha recuado até à calçada, observava a menina. Era pequena e magrinha como as meninas de sua cidade. Mas era bonita, tinha o cabelo comprido e cacheado caindo pelos ombros, os olhos muito vivos e um jeito sereno. E João pensava no pai e se perguntava sobre por que não tinha ainda mandado notícias para casa. E se estranhava toda vez que pensava na família. Estava longe, muito longe de todos eles. Faria como Tonico, anos sem se comunicar com as pessoas que tem?
Enquanto pensava, Waldislânia continuava escorada no batente da porta, sem saber o que fazer. Foi então Tonico que se mexeu: levantou-se e andou até a menina, tocou seu rosto com a ponta dos dedos, abaixou-se de novo, trouxe o corpinho dela para junto do seu, forçou o abraço tão desejado, tão adiado. A menina deixou-se cair no corpo enorme do pai desconhecido, estava enfraquecida, e a mãe não chegaria tão cedo. Tonico então sentou-se no chão da varanda e pôs a menina no colo. Tinha os olhos mareados, mas as lágrimas não escorriam. Com a voz tremida, começou uma conversa.
– Sua mãe não está?
– Está no trabalho.
– Hoje é sábado, pensei que estava em casa.
– Ela trabalha todos os dias, até domingo.
– Ela não recebia sempre o dinheiro que eu mandava?
– Recebia. Mas era pouco.
Tonico sentiu uma pontada de tristeza na voz da filha e, sem pensar, olhou para João lá fora, ainda de pé observando os dois. Tinha trazido o garoto porque sabia que ia precisar de um jeito de fugir das coisas todas que ia sentir naquele encontro.
– Venha cá, João! – e, para a filha – esse aqui é um amigo, se chama João, mora comigo numa pensão lá no centro da cidade.
– Você mora aqui?
– Moro há uns vinte dias. Demorei para vir te ver, porque estava faltando coragem. Eu sei que não devia ter ficado tanto tempo longe. Mas às vezes as coisas não acontecem do jeito melhor.
Waldislânia ouvia sem entender, mas a voz do homem começava a soar familiar e ela se aconchegava no colo imenso em que cabia inteira.
João se aproximou. Sentou-se no chão, no alto da escadinha que levava à varanda e ficou em silêncio. A menina então começou um choro sentido que doía no coração de quem ouvia. João não se aguentou e seus olhos se molharam e teve vontade de ir-se embora dali. Levantou-se e voltou para a rua.
– Onde você vai, João? – Tonico perguntou sem saber mais o que fazer com a menina agora em prantos em seu colo.
– Vou só dar uma volta.
E João não olhou para trás e enxugou os olhos e andou sem pressa. Parou a uns dois quarteirões da casa, em um bar velho e sujo. Sentou-se numa mesa na calçada e pediu uma cachaça. Nunca tinha bebido antes, mas sabe lá o que se passava em seus desejos agora, inteiramente lançados ao vento das mudanças que o faziam se desconhecer. Faria como os outros homens: uma cachaça para pensar melhor.
Bebeu a pequenos goles, assustado com a queimação por dentro. O interior do corpo parece que tinha a realidade intensificada, o líquido descia fazendo perceber cada pedaço por onde passava, até atingir o estômago onde desaparecia. A cabeça inchava e o desassossego não passava. Imagens invadiam a mente, lembranças antigas, o sonho de ver São Paulo, São Paulo real, Clarinha, Méri, a menina de Tonico ali tão perto, a mãe de Méri, sua própria mãe e seu pai, e os irmãos todos, Lindalva, por que não tinha ainda se comunicado com eles? Era só seu segundo dia na terra firme da cidade gigante, mas parecia um século, décadas, a vida toda. João mais e mais se desconhecia, ele não tinha nada de seu nesse mundo. Nem um jeito de ser. Que, desde que se lembrava de si mesmo, a única coisa que o preenchia era o sonho de ir-se embora do sertão. E o engraçado é que nem era infeliz lá, ao contrário, tinha uma vida calma, tinha até o amor de Clarinha, sempre bom aluno na escola, querido pelos professores e ainda mais pela Professora Paulina, e até por Padre Antonino. Ajudava os pais na lida da roça, mas não tanto que o atrapalhasse a estudar. Era um tanto esquisito sim, e não tinha muitos amigos para farra e bagunça, mas ninguém troçava dele – tinha um jeito tão próprio que até gerava respeito. Mas tinha aquele danado daquele sonho: vontade de conhecer o mundo. E o mundo era São Paulo. E agora que estava lá, era como se fosse uma página de papel em branco, sem nada marcado da vida de antes. As coisas todas iam sumindo e até qualquer desejo sumia. João se sentia assim um tanto de nada. Não saberia dizer o que queria fazer. Já estava lá, no meio do sonho, e agora devia só viver, encher-se do novo que o assaltava de todos os lados. Conhecer.
Quase sem se dar conta, decidiu que não se comunicaria com ninguém, nem com Clarinha. Se o perguntassem por que, não saberia responder. Se o perguntassem se não poderia ser diferente, diria que não. Estava nu em um mundo novo e teria que se fazer assim: sozinho e a partir do nada.
Pagou o que bebeu e voltou devagar para a casa da menina. De longe viu que eles ainda estavam na varanda, mas ela agora estava sentada no chão, de frente para o pai, e conversavam. Quando chegou ao portão da frente, pôde escutar o que diziam. Tonico contava sua vida, suas viagens, talvez para se desculpar, talvez para que a menina tivesse agora uma história de seu pai para contar. João ficou parado no portão, sem vontade de subir, e nem sabia por que tinha vindo. Acabou sentando-se no meio-fio da calçada e ficou olhando o movimento da rua. Lembrou-se das horas sem fim que tinha passado sentado na porta de casa, à espera de alguma coisa – e nunca acontecia nada, só o barulho de dentro de casa e a mãe chamando para comer, e o pai zangado com um dos meninos e Lindalva cuidando de tudo para que ninguém se desentendesse, e a mãe às vezes cantando na cozinha. No de fora, nada. Nenhum movimento, nem mesmo o das folhas, porque o vento era raro. Se ao menos viesse a chuva. Algumas vezes ela veio e João agora se lembrou de uma vez em que uma tempestade o pegou sentado na janela do quarto e da alegria que sentiu. Pulou para o terreiro e deixou-se molhar pela água tão rara que vinha do céu. Era fria e boa e João se sentiu limpar de toda a poeira do sertão. E depois entrou, puxado pelo pai que tinha medo de chuva e de doença e foi tomar banho e colocar roupa seca. Quando terminou o banho, a chuva só pingava, e ele voltou para a janela e ficou vendo até cair o último pingo. Firmino e Carlinho o olhavam de banda, queriam saber se tinha sido bom aquele banho de chuva. João sorria para os irmãos e eles se arrependiam de ter obedecido o pai. Firmino era o mais corajoso e agora olhava o irmão mais novo com admiração. João voltou para a cozinha e a mãe lhe deu uma sopa quente para acabar de espantar o frio da chuva. O menino aceitou e comeu, mas seu coração já estava quente demais. Coração de João tinha fome de novidade.
Sorria com a lembrança, quando uma mulher muito bonita passou por ele e entrou pelo portão da casa. Era Laurinda, a mãe de Waldislânia. Subiu a escadinha apressada, na certa assustada com aquele homem sentado com a filha na varanda. João se levantou e foi acompanhar o encontro. A mulher parou no último degrau, empalidecida, parece que só aí o reconheceu. Tonico se levantou e estendeu a mão para ela. A mulher se recusou a cumprimentá-lo e mandou a filha entrar. A menina se recusou a entrar e ficou de pé entre os pais.
– Fala com ele, mãe. Ele só veio me ver e me explicar as coisas.
– Que coisas, menina? Que coisas esse aí pode explicar depois de te deixar sozinha aqui comigo por tantos anos?
– Ele estava longe, mãe.
– Quem tem filho não pode ir longe.
E o rosto dela se encolheu todo, tentando segurar o choro que não queria mostrar para o homem. Mas ele já tinha visto e, por um segundo, pensou que aquela mulher o queria de volta. E, do mesmo modo como um dia tinha arriscado tudo com o sonho de conhecer o mundo nas mãos, desta vez fez o caminho de volta, e mais uma vez lançou-se no risco, apenas com o desejo de consertar os estragos todos que tinha feito:
– Se ainda me quiser, eu volto para casa, arranjo um trabalho por aqui e nunca mais ponho os pés numa estrada sem vocês duas comigo.
Laurinda sentiu uma raiva de morte subir por dentro e a vontade de machucar sem dó aquele homem. Jogou-se em cima dele com as unhas grandes e a raiva toda que a tomava e o arranhou e chutou e tentou cuspir e morder. Mas era pequena demais e Tonico sem esforço a segurou pelos braços e a levou para dentro da casa. Sentou-a no sofá encardido e foi fazer um chá. Quando o viu de costas em frente ao fogão, o seu fogão, a mulher caiu no pranto que tentava segurar e a raiva se misturou com a tristeza da solidão, e logo veio a dor da saudade que sentiu, e então veio o desejo que teve que abafar e que ainda sentia. E mais raiva ainda a invadiu e agora era raiva dela mesma.
Waldislânia não entrou, ficou na varanda olhando para João ainda parado no último degrau da escadinha. João sorriu para ela e sentaram-se no chão. O ar ainda pesado não os deixava falar. O movimento na rua era pequeno, mas não parava. João gostou do lugar, muito diferente do centro onde estava a pensão, teria até gosto em arranjar um quarto numa casinha qualquer por ali. E riu de si mesmo quando se deu conta de que os prédios muito altos com os quais sonhara a vida toda estavam era lá, no centro. Mas logo o riso passou e veio foi uma dor muito funda – é que viu que até o sonho ia embora e aí então não restaria mesmo nada do que fora sua vida de antes. João se despia de tudo. E respirava fundo o ar da cidade maior do mundo... e de novo sorria, ah, não era a maior. Mas era como se fosse e João, sem saber por que, estava era quase feliz.
Não se dava conta de que tinha sido sempre um menino sem lugar. Coração de João não tinha pouso, nem dono. Mas nem ele mesmo era o dono.
– Moço, vem, o pai tá chamando para tomar café.
Entraram então os dois e encontraram o casal sentado na mesa posta com café, chá, pão e bolo. Tonico tinha arrumado tudo e Laurinda, com o rosto ainda vermelho e marcado, quase já sorria. Waldislânia e João se sentaram e se serviram, enquanto o pai e a mãe da menina se olhavam. Se olhavam se procurando, buscando um ao outro em sua forma antiga, de anos atrás. Mas ninguém falava. Até que a menina não se aguentou:
– Mãe, vai deixar o pai voltar?
Laurinda fez um sinal incerto com a cabeça e não disse nada. Os olhos turvaram-se de novo.
– Deixa, mãe – e a filha olhava para o pai com um amor tão novo que ele também sentiu o molhado nos olhos. Mas ele também não disse nada.
E então os dois homens saíram com a promessa de voltar em uma semana. A filha abraçou o pai. A mulher ficou de longe olhando. As duas fecharam a porta e sentaram juntas no sofá. A mãe caiu de novo no choro guardado, a menina deitou-se no colo.
João e Tonico pegaram o ônibus, depois o metrô e sentaram-se em um bar sujo e cheio, próximo à pensão. Tomaram cachaça e comeram linguiça. Pouco falaram.
Quando quase já iam embora, João perguntou, não sem medo:
– Se ela te aceita de volta, você vai mesmo conseguir sair da estrada, ficar parado aqui em São Paulo, a vida toda?
– Se é a vida toda não sei não, mas agora acho que é mesmo o que eu mais quero. Sabe o que descobri depois de tanto rodar por esse mundo, João?
– Fala.
– Que o mundo é sempre o mesmo. As pessoas são sempre as mesmas. Mais vale então escolher um canto e viver nele, com o coração todo lá.
E desta vez foi João quem sentiu o queimado da lágrima molhando os olhos ressequidos. Era o que a senhora do ônibus dizia. E João não entendia – porque o que estava vivendo naqueles primeiros momentos em São Paulo era o extremo oposto, era a realidade bruta do novo, do absurdo diferente. Não entendia, mas se inquietava.
Voltaram então para a pensão. João estava pesado como se há séculos não tomasse um banho. Já era noite e Méri não estava no balcão. João cumprimentou a mãe da moça e foi para o quarto. Deitou-se na cama e toda sua realidade caiu-lhe em cima do corpo. Mas ele não entendia, e nem sabia o que poderia ser entendido. Apenas sentia que o peso do que não entendia lhe machucava os ombros. A cabeça rodava, imagens antigas se misturavam às dos últimos dias. Acabou dormindo sem banho e sem tirar a roupa suja do dia.
Na manhã seguinte acordou com o sol já alto, Tonico ainda dormia e Bráulio já não estava no quarto. Sentia o corpo descansado pela primeira vez desde que entrara no ônibus em sua cidade. O peso agora era só o da sujeira, o que tratou logo de resolver. Tomou um banho longo e prazeroso. Era domingo e tinha o dia livre. Já tinha conhecido um bocado da cidade naqueles longos dois dias. Hoje se sentia livre. Nada a fazer, a não ser deixar o dia correr. No dia seguinte, começaria a procurar trabalho.
Desceu para tomar café com o rosto leve. O peso da noite anterior, se não era apenas o cansaço e a poeira, tinha desaparecido junto com eles. João desceu as escadas como quem chega. E era esperado.
Méri, ao pé da escada, tinha para ele um sorriso e um vestido muito alegres. Era domingo. E João também sorriu e sentou-se com ela para o café. Ela o serviu e trouxe lá de dentro uma fatia de bolo de fubá que não estava na mesa. Ele tentou não aceitar, mas não resistiu ao modo como ela oferecia. Sim, João estava leve e não resistiria mais.
– Méri, quer passear comigo hoje?
A moça sorriu, disse que tinha que trabalhar na pensão até às três da tarde, mas que depois a mãe vinha para o balcão e queria sim, passear com ele. Mas só se depois ele fosse conhecer seu quarto.
João sentiu de novo o calor estranho que subia pelo corpo todo e deixava o rosto em fogo.
– Não posso decidir depois?
A moça sorriu com malícia e balançou a cabeça em negativa. Passou o pé pela perna de João por baixo da mesa, enquanto dizia que ele tinha que decidir agora, senão ela não ia para o passeio. E então, como no outro dia, passou o dedo na própria boca e levou-o à boca de João que, desta vez, lambeu querendo sentir bem forte o gosto daquele batom.
Era bom e João, sem peso, concordou. Disse que iria andar à toa e que às três horas estaria lá para buscá-la.
Saiu da pensão com o corpo e a cabeça em fogo. De muito longe lhe veio a imagem de Clarinha, do sorriso de Clarinha. Mas a imagem não teve força para se tornar clara; o passado todo de João se desfazia em neblina, e ele olhava o mundo com olhos novos, como se nunca tivesse visto nada antes. Seu olhar era virgem como seu corpo. E João varria a poeira do passado.
Caminhou pelo bairro, leu as manchetes dos jornais nas bancas abertas, tomou uma cachaça enquanto almoçava, caminhou mais, voltou. Se arrumou e desceu às três horas em ponto. Saiu com Méri com uma alegria nova e um aperto no peito. Foram de ônibus para um parque muito grande, andaram de mãos dadas, sentaram-se na beira do lago, andaram mais, procuraram por uma sombra debaixo de uma árvore grande, sentaram-se outra vez. Méri se achegou para junto do corpo de João e o beijou na boca, sem nenhuma cerimônia. Ele se assustou, tremeu, e gostou. Apertou o corpo todo da moça de encontro a seu próprio corpo e deixou subir o calor que o vinha perturbando desde o primeiro dia. Se beijaram e se apertaram, até que ela quis falar:
– Você nunca esteve com mulher, não é, meu rei?
João fez que não com a cabeça e sentiu o rubor subir à face.
– Tenha medo não. Eu vou saber cuidar de você – e mais o beijou.
Já era noite quando chegaram à pensão. Subiram juntos as escadas e atravessaram a porta cor de rosa, que Méri cuidou de trancar. João ficou parado observando o quarto. Era maior do que o seu, tinha cama de casal, espelho, armário grande, e até um banheiro pequeno. As paredes eram pintadas de rosa, como a porta; doía nos olhos e João pensou que era impossível dormir naquele quarto. Mas era bonito, e João sentiu vontade de se sentar naquela cama tão grande. Por um instante pensou que muitos homens já tinham se sentado e se deitado lá, e teve medo outra vez. Não sabia o que fazer.
Méri então veio vindo do banheiro, só de sutiã e calcinha, e tudo era rosa também, e João se sentiu tontear, e uma leve vontade quase o fez sair correndo dali. Mas ficou.
E se deixou levar, e não soube mais de si, que ali quem dava as ordens era Méri.
E João, que era mesmo virgem, no corpo e nos olhos, viveu ali um nascimento. E, quando saiu, de banho tomado e sentindo fome, foi até o bar da esquina, bebeu duas cachaças e comeu um prato feito. Voltou para o seu quarto onde os outros já dormiam. Ajoelhou-se ao pé da cama e só conseguiu pensar em Padre Antonino: será que ele se enganara, será que estava entrando no caminho ruim e a alma pura, que talvez tivesse tido, tinha se dissolvido na poeira da estrada que era muita e muito fina? E pediu perdão a Clarinha, e pediu à mãe que o perdoasse e pediu ao pai que o ajudasse. E se deitou e o corpo estava alegre e a alma impura estava alegre e o sono veio fácil e João já não sabia de si.