quarta-feira, 16 de novembro de 2011

I

A tarde caía lenta e serena avermelhando o céu da cidade. O ônibus já estava parado no ponto, de portas abertas, esperando os passageiros ajeitarem a bagagem e terminarem as despedidas que não queriam ter fim. A terra seca deixava ver aqui e ali uns chumaços de capim entre as árvores esparsas que contornavam as casas. No fim da tarde, o céu se coloria até atingir a cor da terra vermelha. A multidão de gente no ponto do ônibus parecia toda querer entrar para ir embora dali, deixar para trás aquela vermelhidão sem fim das terras do sertão. Mas não havia lugar para todos, quem sabe amanhã...
Quando a lua cheia começou a surgir no céu já quase escuro, no princípio daquela noite que seria a primeira da nova vida de João, o motorista entrou no ônibus e buzinou três vezes, dando o sinal de que era hora da partida. Alguns pássaros atravessavam o céu e tinha quem pensasse que era sinal de chuva. Os mais velhos sabiam que não, aquele não era o pássaro do aviso. João, sem pensar, olhou para o céu e viu o bando desaparecer no horizonte na direção do clarão da lua. Voltou a cabeça para baixo e abraçou mais uma vez a mãe, o pai, os irmãos todos, Clarinha, Padre Antonino, Professora Paulina, os poucos amigos. Subiu os degraus de cabeça baixa para segurar o medo e sentou-se em sua poltrona, ao lado de uma senhora gorda que trazia um exemplar do Novo Testamento nas mãos. João, num relance, pensou que deveria ter pedido ao padre um Livro para ele. Para ter companhia na vida nova que ia começar e que teria que viver sozinho. Olhou então pela a janela e viu todos ainda lá parados, as pessoas todas que tinha na vida, olhando-o partir para São Paulo à procura de... de quê, meu Deus, à procura de quê que vou nesse ônibus velho por esta estrada longa demais, que nunca conheci para além da cidade mais próxima? E, de dentro das perguntas que se fazia, João acenou para trás, vendo-os desaparecer na poeira deixada pelo correr do ônibus. A estrada seguia reta atravessando o sertão em direção ao Sul, cortando de cima a baixo o Brasil, do interior do Ceará à maior cidade do mundo. João não sabia se era mesmo a maior, mas haveria de ser – cidade tão grande, capaz de receber dezenas de ônibus carregados de nordestinos todos os dias, haveria de ser como o paraíso, onde sempre teria lugar para quem precisasse entrar. João era assim, uma espécie de tolo que descia rumo ao que pensava ser o centro do mundo, com a certeza de lá encontrar o seu lugar. Ia com o coração leve, já esquecido das perguntas sem resposta, carregado de uma pureza que já não se vê mais, que já nem se quer mais. Ia levando a esperança toda que tinha, a certeza de poder voltar de férias trazendo dinheiro e presentes e quem sabe levar Clarinha com ele para casar e ter família. O medo, quando vinha, era pequeno, e João logo o espantava com as certezas que o empurravam. Não pensava nas dificuldades que poderia ter e nem no perigo de que o pouco dinheiro que tinha se acabasse antes de conseguir um emprego. São Paulo era grande e tinha lugar para todos.
Era com esse pensamento que João seguia viagem rumo a seu destino. Seguia de olhos muito abertos, olhando a vastidão do sertão pela janela também aberta, e o vento cortando-lhe o rosto era um pequeno refresco para o calor. A noite clara permitia que ele enxergasse o contorno das pequenas árvores que ainda resistiam. No mais, era a terra e a poeira. Poeira vermelha que entrava pela janela com o vento, deixando o cabelo duro e a pele retesada. João não se importava. Seguia com os olhos abertos e o desejo ainda mais aberto à espera do mundo novo. São Paulo devia ser uma coisa linda. Nas fotos que já tinha visto, gostava mais era da quantidade de prédios altos como gigantes... se pudesse, moraria no alto do mais alto deles e quem sabe lá de cima não conseguiria ver sua Clarinha esperando por ele no batente da porta... Do alto de São Paulo se poderia ver o mundo inteiro. João esboçava um sorriso quando pensava no vento limpo, sem a poeira do sertão, batendo em seus cabelos na janela mais alta de todas. Lá embaixo, as ruas e os carros. Tinham dito a ele que não era fácil ter um carro e morar no alto de um prédio, mas João não se importava, nada tinha sido fácil desde o dia em que nasceu – o último dos dez filhos, a pobreza e a doença, a falta de médico e de recursos, as febres altas e a fome que roía as tripas por dentro, os dentes fracos, o sorriso frágil, o olhar sempre lançado no horizonte sem fim do sertão. Quase morreu mais de uma vez, por febre ou machucado, e não perdeu o jeito de lançar longe o olhar e as vontades. A distância imensa que podia ver da janela do quarto era desde sempre o convite. Sonhava com o dia em que se colocaria a caminho, passo a passo, na direção do sem fim que via. Quando tinha nove anos já tinha juntado a coragem de que precisava. Pegou os trocados todos que tinha guardado no bolso da calça, calçou as botas do irmão mais velho e saiu. Se pôs a caminho. Andou até não aguentar mais, e nada mudava. O dia inteiro se passara e o horizonte continuava à mesma distância diante de seus olhos. Terra e poeira. Chumaços de capim, pequenas árvores retorcidas. Cactos. Uma ou outra casa ao longo da estrada. E o mesmo horizonte, a mesma vermelhidão. No final do dia, depois de ter andado sem descanso e sem beber ou comer, caiu desmaiado no chão bruto e seco. Um homem passou por ele e o reconheceu, o moleque menor do Luiz da Dôra. Colocou-o no lombo do burro em que vinha montado e o levou de volta para casa. Chegaram lá quase à meia noite e encontraram a família toda reunida em torno da imagem da santa, rezando por João. Quando viram o menino quase sem conseguir andar, todo sujo e com a tristeza toda do mundo estampada no rosto, caíram todos de joelhos, menos Dôra que foi pegar o filho nos braços e cuidar de seu corpo com água e comida, que contra a tristeza ela não podia lutar. João recuperou um pouco da força depois de beber mais de um litro de água e de comer o mingau que a mãe tinha preparado. Perguntaram o que tinha acontecido e João só disse que tinha saído em busca do mundo lá de fora, mas que só tinha encontrado sempre esse mesmo mundo de terra e poeira que ele via desde sempre. Disseram então que parasse de sonhar tanto e se dedicasse à lição e à lida na roça. Mas a professora Paulina, que também estava lá e que nessa época era ainda quase uma menina, disse a ele fazendo carinho em seu rosto que existiam, sim, muitos mundos diferentes daquele ali e que quando ele crescesse talvez pudesse conhecê-los, mas que era preciso partir de ônibus, porque o sertão era muito e muito grande, impossível de ser vencido apenas com os pés. João escutou cada palavra da professora e sorriu. Quem estava em volta viu a beleza do seu sorriso e mesmo quem não acreditava no que tinha dito a professora aliviou-se na certeza de que João ia ficar bem.
Ficou bem daquela vez e de muitas outras em que se viu às portas da tristeza. Quando conheceu a Miroca, lá pelos treze anos, foi uma dor sem fim. Miroca era bonita e dançava forró nas festas enquanto o pai deixava, depois voltava para casa, cheia de orgulho e alegria. Ela tinha catorze anos nessa época, e João não perdia uma chance de vê-la, nas festas, nas ruas, onde quer que fosse. Vigiava a moça o quanto podia, andava atrás dela, comprava chocolate e compraria briga, se fosse preciso. Um dia resolveu se arriscar e falou com ela, disse que era a moça mais linda do mundo inteiro e que queria muito ser o namorado dela. Miroca riu como quem vê a peraltice de um moleque e passou a mão no rosto dele; depois disse que não podia, que já tinha seu namorado. João não quis acreditar, pois a seguia por toda parte, noite e dia, e nunca tinha visto ninguém com ela que tivesse jeito de namorado. Ela então disse que ia lhe contar um segredo e falou bem baixinho no ouvido dele, deixando-o quente e assustado, que, como o pai não a deixava namorar, fingia que dormia cedo e então fugia pela janela para encontrar o Marcão do mercadinho, era ele o namorado. João sentiu a fincada no coração e saiu correndo sem olhar para trás. Deitou-se na cama onde passou o resto do dia e só saiu quando a mãe chamou para o jantar. Não conseguiu comer, ficou sentado na mesa olhando o prato com o olhar perdido. Quando a mãe perguntou se estava doente, caiu em prantos com a cabeça sobre a mesa. Lindalva, que era a irmã mais velha, levou-o para o quarto e viu que queimava em febre. Dormiu com uma toalha molhada sobre a testa e no dia seguinte não quis ir à escola. Ficou assim por alguns dias, pensando no Marcão. Era um rapaz muito maior do que ele, já devia ter seus dezoito anos, era forte, trabalhava, tinha até dinheiro para casar, se quisesse. Miroca era menina e tinha olhado para ele como se fosse uma mãe. João sentiu-se pequeno como um inseto perdido no chão. Carregou a tristeza por muito tempo, até que a dor foi passando de mansinho e conheceu outras meninas.
Já tinha quase dezessete anos quando começou a gostar de Clarinha. Se conheciam desde pequenos, iam juntos para a escola, brincavam juntos na praça. Um dia ela passou por ele com duas amigas, as três chupando picolé, conversando tão distraídas que nem deram conta da presença dele. João chamou por Clarinha e pediu um pedaço do picolé. Ela estendeu o braço oferecendo e ele segurou na mão dela para não deixar o picolé cair. Sentiu então um nervoso estranho e segurou com mais força na mão que também parecia trêmula. As duas amigas tinham continuado o passeio, rindo escondido do sem-jeito de João. Porque João era assim, desajeitado para a vida. Não conseguia saber o jeito certo de fazer as coisas, estava sempre tentando aprender. Mas, nesse dia, soube o que fazer. Deixou por querer o picolé cair, mas não soltou a mão de Clarinha: puxou-a para perto de seu corpo e beijou sua boca cor de rosa que se oferecia como um botão se entreabrindo. Ela o abraçou com força e disse que já não aguentava mais de tanto esperar por esse beijo. João sorriu e caminharam de mãos dadas para o mercadinho e compraram mais picolé. Quem os atendeu foi a Miroca, grávida do segundo filho, mulher do Marcão. Ela olhou para João com malícia e disse a Clarinha que tinha sido o primeiro amor da vida dele. João corou e abaixou os olhos, Clarinha apertou a mão dele com força e com ódio da Miroca que tinha falado só por maldade.
Desde aquele dia, João e Clarinha só andavam juntos pela cidade. Estudavam, ele trabalhava na roça com o pai, e ela tentava fazer planos para o futuro. Arranjar um trabalho qualquer, casar e ter família. Mas João nem escutava. Queria trabalho qualquer não. Queria vida boa e grande para sua Clarinha. Queria ir para São Paulo conhecer o mundo e voltar para buscá-la. Clarinha não gostava dessa conversa, mas também não discutia, porque não queria brigar. Seguia tentando arranjar um jeito de fazê-lo mudar de ideia.
O ônibus seguia sempre em frente na estrada longa e reta. João perdia-se em lembranças e devaneios sobre a vida nova que começava. Sorriu quando lembrou-se de que tinha sido um menino desajeitado... Mas ele era ainda todo desajeitado para a vida. Tinha a cabeça carregada de sonhos e ninguém conseguia dissuadi-lo de suas próprias ideias. Havia distância entre João e o mundo, mas ele não se dava conta. Olhava pela janela com o prazer sem preocupações de quem consegue só receber o vento no rosto e se alegrar pelo alívio para o calor. João gostava da vida, mais ainda da vida nova que começava bem ali, no ônibus, no meio da estrada desconhecida. Fechava os olhos e via São Paulo, a cidade maior de todas, a cidade que lhe daria o mundo novo, a vida nova.
Quando o ônibus parou pela primeira vez para lanche e descanso, João desceu feliz, disposto a conhecer cada fresta do mundo que se oferecesse a seus olhos. Foi ao banheiro e comprou café e pão com manteiga. Gostou de tudo. Ouviu alguém reclamar da sujeira do banheiro, mas sorriu para si mesmo, não estava tão sujo assim. Era o mundo novo e João queria recebê-lo inteiro. Só se inquietava quando vinha forte a vontade de conhecer logo uma coisa que fosse mesmo nova nesse mundo tão grande, que por enquanto ainda era feito de poeira e calor. Sentia de leve o ventinho da noite que não chegava a esfriar, exatamente como em sua casa deixada para trás há mais de quatro horas. Não sabia se ainda estavam no Ceará: não importava, sabia que ainda era o sertão.
De volta ao ônibus, encontrou sua companheira de poltrona lendo novamente a bíblia pequena que tinha deixado cair ao cochilar, logo no primeiro embalo do ônibus. João pediu licença e sentou-se com os olhos colados na janela.
– Vai pra onde, moço? – escutou de repente a mulher perguntar. Estava já tão desacostumado a ouvir alguém se dirigir a ele, pois desde que começara a viagem não tinha ainda aberto a boca para falar, e a viagem já parecia durar a vida toda, que se desconcertou e quase não soube como responder.
– São Paulo. E a senhora?
– Vou pra lá também, praquele mundão sem fim de gente e pedra.
João não entendeu:
– Pedra?
– Pedra, sim, tudo lá é feito de pedra, casa, prédio, fábrica. É olhar para a cidade e só se vê tudo cinza e as pessoas correndo de um lado para o outro. Gosto não. Vou só porque minha filha mora lá com o marido e teve criança. Preciso ajudar pra ela ir trabalhar, senão morrem todos de fome lá.
João entendeu menos. Trabalhar muito só para não morrer de fome... Mas isso era o que já se fazia lá em seu mundo velho, na casa do pai e da mãe, e também na casa de Clarinha e de todos da cidade. Mas não quis conversar mais não. Queria era olhar a janela, ver o que tinha na beira da estrada.
– Vai fazer o quê em São Paulo, moço?
Desta vez João se irritou, mas respondeu sem olhar para o lado:
– Vou trabalhar para buscar minha noiva e me casar.
A mulher sorriu e não disse mais nada. Voltou para a leitura do evangelho, que logo escorregou outra vez de suas mãos enquanto dormia sem sonhar. João nem percebeu, respirando fundo o cheiro da noite.
Depois de algum tempo, dormiu também e quando acordou já era dia. A mulher a seu lado roncava de boca aberta. João pegou no chão o livrinho caído e se pôs a ler uns pedaços. Pensou outra vez que devia ter pedido um daquele para padre Antonino. Leu por acaso a passagem em que Jesus chama os pescadores para o seguirem. Fechou o livro e o colocou nas mãos da dona. Fechou os olhos e ficou imaginando os dois homens simples sendo chamados a abandonar tudo o que faziam e a casa onde moravam para seguir ao Senhor; se fosse com ele, iria sem medo. Nada o prendia nessa vida, seguiria o Senhor por onde fosse preciso, sem chorar pelo que deixava para trás. Não tinha agora mesmo deixado Clarinha e o pai e a mãe e os irmãos e os amigos, e a cidade onde tinha vivido sempre? Queria, sim, voltar para buscar Clarinha, mas, se fosse preciso, não voltava e a deixava viver seu caminho, que o dele era novo, sempre novo. Entrava na vida nova que planejara para si desde moleque, a vida nova era sua vida verdadeira. Era o destino que chamava. E João nem se dava conta de que o chamado do Senhor era o mesmo que o chamado do destino e que, sendo assim, todos eram os chamados. E o destino de João era a estrada que se estendia bem em frente à sua janela desde o dia em que nasceu pela mão da parteira mais antiga de cidade, Maria do Parto, que agora já não vivia e que tinha feito viver centenas de crianças por toda a vida.
Quando nasceu, a mãe quase morreu, tinha já quarenta anos e ele era o décimo filho que punha no mundo, fora os quatro que não tinham vingado. Quarenta anos que pareciam ser sessenta, tão cansada da vida era a mãe quando teve que cuidar de João, que nasceu pequeno e doente. Na época, dos nove filhos maiores, três viviam na capital e os outros seis estavam em casa, cinco eram crianças ainda. Lindalva era a mais velha de todos, tinha já vinte e cinco anos no nascimento do caçula, e nunca quis sair de perto do pai e da mãe. Ajudava na lida da casa e da roça, tinha cabelos compridos sempre presos em duas tranças, e cuidou de João como se fosse a mãe. João a chamava de Dindinha, mesmo sabendo que não tinha sido batizado, que naquela época a cidade estava sem padre e quando padre Antonino chegou, ele já era moleque grande e ninguém mais se lembrou do assunto. Queria se batizar, gostava das coisas da igreja, mas padre Antonino disse que não se preocupasse com isso, que Deus não dava tanta atenção às coisas pequenas não. Perguntou então, cheio de espanto: Mas padre, se o batismo é coisa pequena, o que é que é grande então? O padre não conseguiu se explicar direito, disse só alguma coisa sobre ajudar a quem precisa e não se deixar levar pelo caminho do mal. Mas o que é, padre, o caminho do mal? Padre Antonino sorriu e disse: se preocupe não, João, você nunca vai conhecer esse caminho não, que você tem a alma pura.
João ali no ônibus se perdia nessas lembranças enquanto olhava o livrinho no colo adormecido da mulher gorda que não gostava de São Paulo. Queria ainda saber o que é o caminho do mal e o que é a alma pura que ele tem. João se viu refletido na janela do ônibus e pensou que era um homem qualquer, nem puro nem nada. João não sabia que era ainda o moleque sem jeito que tinha deixado cair a imagem da santa em plena procissão.
Tinha sido numa festa da padroeira. Procissão grande, vinha gente de todo canto. A cidade ficava cheia, com o povo todo das cidadezinhas próximas. Festa bonita, com barraquinhas pelas ruas e as pessoas todas alegres, com orgulho da cidade. A cada ano, uma família era responsável pela imagem da santa. Naquele ano era a vez de sua família. Ocasião muito esperada, que desde menina Dôra sonhava em ter a santa em sua casa e prepará-la para a saída da procissão que começava bem cedo e seguia em direção à igreja onde padre Antonino rezava uma missa especial. Rezava pela santa e pela cidade e pela vida de todos os que moravam lá ou que lá estavam de visita. Na hora da saída, o andor já preparado para receber a imagem, João pediu à mãe para levar a santa até à porta. A mãe deixou, receosa, mas também orgulhosa de menino tão achegado às coisas de Deus. João veio vindo lá de dentro, as pessoas lá fora já vendo a santa, já se enchendo da emoção simples que vê Deus em toda parte. O menino vinha tão feliz, tão orgulhoso de si, como se carregasse vivo o Menino Jesus em pessoa, que não se aguentou de tanta alegria: tropeçou no umbral da porta, caiu ainda tentando segurar a imagem, mas ela escapou de suas mãos e bateu no chão com força. Por sorte era forte e a queda foi curta, quebrou só a pontinha do dedo de uma das mãos. Coisa à toa. O povo se assustou, mas Padre Antonino estava lá e acalmou a gente toda: calma, pessoal, que Deus não se aflige com coisa pequena não. Desde esse dia João encafifou, que é que seria mesmo importante para Deus? Nem batismo, nem ponta de dedo de santa, nada disso O incomodava... Padre Antonino bem que tentava se explicar, mas João não entendia.
Menino desajeitado que era, por causa da força das coisas que andavam por dentro dele, João seguia crescendo com os olhos espichados para a estrada. Como agora que já era homem e olhava a estrada que escorregava pela janela do ônibus mal cheiroso.
Já estavam na Bahia há algum tempo, quando a paisagem começou a mudar. Era o fim do sertão. João se encheu de uma emoção nova, começava a ver um mundo diferente pela primeira vez em toda sua vida. Lembrou-se outra vez do dia em que saíra à pé à procura desse fim, da professora dizendo que era preciso ir de carro... E agora, de dentro do ônibus, começava a ver a mudança nas plantas, no relevo que se acidentava mais, no verde que era mais constante. João sorria para o mundo novo. Não tirava os olhos da janela e nem o sorriso do rosto. Não se aguentando de tanta alegria, virou-se para sua companheira de viagem que ainda tinha os olhos colados na bíblia:
– Olha aqui na janela, olha como é bonito!
A mulher olhou sem vontade para a janela e franziu os olhos por causa do sol. Fez um muxoxo sem jeito e respondeu:
– Esse sol me cansa a vista, não consigo ver nada lá fora. Mas já sei, é só mato e uma ou outra tapera mais pobre ainda que as da minha terra.
– Não, não é não. É tudo muito diferente de nossa terra, dona. As árvores aqui estão mais verdes, até o cheiro é diferente, os pássaros também são outros, o sertão já ficou para trás, agora é outra coisa, é outro mundo mesmo, dona, olha, olha com calma.
Ela virou-se outra vez para a janela e fez sombra para os olhos com as próprias mãos. Respirou com força, tentando em vão sentir o cheiro novo.
– É nada não. É só o mesmo mundão velho de sol e pobreza. Parece que você é um rapaz muito sonhador.
João olhou para ela incrédulo e quis insistir, não era possível não perceber a beleza que ele via e cheirava. Mas conformou-se, deixou-a continuar a leitura e voltou o olhar para a janela. Cada árvore ou planta diferente que surgia ele percebia, pois tinha crescido com os olhos fixos no mundo que o cercava, conhecia cada palmo de terra em torno do terreno dos pais, conhecia cada planta, cada bicho, cada pássaro, cada cheiro. E sabia, tinha certeza, de que tudo o que conhecia tinha ficado para trás. Gostaria de percorrer a pé a estrada e ver de perto cada novidade que encontrasse. Mas queria mais era seguir com pressa na viagem, chegar a São Paulo, e então se contentava com o olhar distante através da janela.
A vizinha de poltrona, por sua vez, não conseguia mais se concentrar na leitura. Rapaz estranho, pensava ela, alegria tão grande por sentir um cheiro novo no ar. Será que ele nunca tinha sofrido, não tinha nunca sentido o gosto amargo da vida? Entristeceu-se de repente pensando em tudo por que já tinha passado nessa vida. Que alegria era aquela daquele moço, que alegria era aquela que ela não era capaz de sentir?
– Moço, como é seu nome?
– João. E o seu?
– Marluce.
– Muito prazer. – João disse estendendo a mão para ela, como se acabassem de se conhecer. Ela correspondeu, sorrindo sem jeito.
– Você é um moço muito diferente, sabe? Fico pensando em o que é que te deixa tão alegre olhando por essa janela suja de poeira.
– Gosto de ver as coisas do mundo, principalmente as que nunca vi antes. Isso me deixa alegre.
João sorria e seu rosto parecia o de um menino. Marluce não entendeu, mas sorriu também. Por dentro se contraiu, pensando que o moço ia sofrer, e muito, na cidade de pedra. Mas não disse mais nada. Era assim que as pessoas costumavam lidar com João: tentavam mostrar a ele o mundo que chamavam de real, mas depois entendiam que não tinha jeito, que João tinha um jeito próprio de ver as coisas, e que ninguém conseguiria mudar isso, aí então desistiam, davam de ombros. Ou até gostavam. Clarinha se apaixonou, a professora se encheu de ternuras, Padre Antonino se aproximou. Teve a menina Dolores que fez o diabo para conquistá-lo, encantada que ficou com o desajeito de João – mas ele nem percebeu. Em casa, a mãe se preocupava, o pai se enervava, Lindalva o protegia, os irmãos não se importavam. Quando ele ficava tempo demais olhando pela janela, a mãe chamava, vem menino, vem brincar com seus irmãos, sai dessa janela que assim você acaba doente. Às vezes ele ia, saía lá fora e ia correr com os irmãos, outras vezes, não: quando o que estava imaginando estava bom demais, fingia que não escutava a mãe e continuava a olhar o longe que nunca alcançava. Como na tarde carregada de nuvens em que ficou por mais de três horas parado na mesma posição, planejando seu futuro. Foi nesta tarde que decidiu que quando completasse dezoito anos ia pegar o ônibus para São Paulo. A partir desse dia, juntou todo o dinheiro que pingou em suas mãos para que, quando fosse o tempo, pudesse comprar a passagem; haveria de dar, pois faltavam ainda oito anos. Foi também nessa tarde que planejou morar no mais alto do mais alto dos prédios. Muitos anos mais tarde, imaginou que de lá veria Clarinha no batente da porta.
João, ainda pensando naquela tarde que já ia longe na memória, compreendeu que agora cumpria seu destino. Desenhava o destino como quem crava na madeira uma imagem com a ponta do facão. João, com o olhar perdido na vastidão lá de fora, tinha o corpo bem colocado na poltrona do ônibus e caminhava com ele rumo ao futuro que tinha planejado. E João se confundia entre o planejado e o desejado, entre o menino que foi e o que queria ser, entre os rumos que cumpria depois de tê-los traçado e os pedidos que fazia para que assim fosse. É que João sentia o medo que chegava sorrateiro, talvez entrando na fresta aberta pelo que lhe dizia sua companheira de viagem. São Paulo, a cidade iluminada e grande, a cidade que tinha atraído para si todos os sonhos de João, que não vivia um dia sem pensar no que sonhava, a cidade que talvez não fosse como ele pensava. Mas não dava muito espaço para o medo não, e logo tampava a fresta aberta com a alegria das coisas todas que imaginava. E de novo estava no topo mais alto, e de novo buscava Clarinha.
Mas João pensava também nas coisas que queria fazer. Precisava de trabalho e de estudo. O trabalho não escolhia não, podia ser qualquer um que lhe desse sustento e o permitisse guardar um pouco para o casamento e para a viagem de busca da noiva. Mas o estudo era diferente, queria escolher para não ser levado pela vida. João queria ser construtor de estradas para fazer mais e mais caminhos por esse mundo todo. João gostava era de sair de onde estava e conhecer o diferente. E então talvez até São Paulo não fosse o seu destino, não o destino final.
Mas o que poderia ser o final do destino de alguém, se a vida é incerta e aberta e nova a cada curva da estrada? Era assim, entre um pensamento e outro, que ele seguia viagem no ônibus cada vez mais sujo e encardido da poeira que ainda entrava. O sol estava alto no meio do céu quando pararam para almoço. Cruzavam ainda o estado da Bahia, que era grande como o quê. João desceu do ônibus sozinho, Marluce ajeitava as bolsas antes de sair. Desceu aliviado, que não queria conversa. Queria andar um pouco em torno do restaurante, que era sujo e antigo como aqueles de seu sertão velho. Mas sentia bem o cheiro novo do clima, procurava aqui e ali um pássaro desconhecido e quem sabe até um animalzinho que passasse rasteiro por perto. João gostava das coisas vivas do mundo e não imaginava que em São Paulo a vida animal e vegetal tinham que encontrar buracos por onde surgir em meio ao cimento. Marluce tinha dito pedra – uma cidade de pedra onde qualquer bicho deve estar sempre escondido ou puxado pela coleira. João não imaginava que as coisas tão queridas de seu mundo velho poderiam não caber no mundo novo. E nem desconfiava de que a mudança vem sempre acompanhada de uma pontada na carne.
Mas João era assim: com o que não gostava, não se preocupava. Ah, sempre era possível seguir em frente e retraçar o rumo do que não estivesse direito. Ele tinha esperança. E isso fazia seu rosto jovem parecer mais jovem ainda, quase tingido da beleza que tinha quando era criança e se entregava às brincadeiras na terra vermelha do quintal. E foi bem na frente do ônibus, olhando o mato à procura de alguma vida, que João se lembrou do dia em que seu irmão Firmino tinha pegado uma cobra grande, sem medo nenhum. Firmino era valente e não temia a natureza; era sempre o guia quando saíam pelo mato em brincadeira e aventura. Naquele dia tinham saído os três meninos juntos, as meninas estavam com Lindalva, os pais na lida da roça. Caminharam pela estrada por mais de meia hora e entraram no mato que não era muito, só um chumaço ou outro entre as árvores cansadas do sol. Se sentaram no chão à espera de algum bicho, os potes de vidro na mão para segurar a presa. Esperavam um bichinho qualquer, um lagarto, um sapo, quem sabe um gambá, mas não esperavam a cobra grande e barulhenta que de repente apontou entre as duas árvores próximas a Firmino. Ele se levantou de um susto sem olhar para o rosto lívido dos irmãos que o chamavam, tentando fazê-lo voltar para trás e correr com eles para casa. Firmino não escutava, hipnotizado pela cobra pronta para o ataque. Abriu o pote grande que tinha consigo e se aproximou do animal, segurando o vidro com a boca aberta em sua direção. Quando a serpente se jogou em direção ao menino, caiu bem dentro do pote de vidro que ele tratou de fechar rapidamente. E foi com o troféu nas mãos que correu aos gritos atrás de João e Emanuel, que já quase alcançavam a casa gritando por Lindalva.
João ali de pé, começando a sentir fome e a pensar em almoçar, sorriu à lembrança da irmã apavorada com o vidro nas mãos, olhando para Firmino sem acreditar no que o menino tinha feito. João, moleque de seis ou sete anos, passado o medo, sentiu foi um orgulho imenso do irmão maior e a vontade de ser como ele, sem sombra de medo. E foi assim sem medo que entrou no restaurante e pediu seu prato, que hoje era arroz, feijão, carne cozida com batata e tomate fresco. Comeu com gosto e não percebeu Marluce logo na mesa ao lado, junto a uma família que viajava nos bancos traseiros do ônibus, maldizendo a comida e o lugar em que estavam.
Mais tarde, olhando pela janela o entardecer e sentindo o cheiro da noite a penetrar o ônibus, João se perdeu nas lembranças de Clarinha. O sorriso dela, tão bonito, bonito como só o que é vivo e fresco pode ser. Sorriso de Clarinha era um sossego no coração. João se sossegava na sombra do sorriso de Clarinha enquanto o ônibus se balançava nos buracos da estrada. A estrada era velha e mal cuidada e João não percebia, feliz como estava por ser conduzido por ela. Era a estrada que o levava em direção ao sonho. João sonhava e agora fazia da vida, o sonho. A viagem para São Paulo não se dava entre os buracos, se dava era bem no peito de João. Estava ainda perdido assim, com a imagem de Clarinha a lhe preencher toda a visão, quando Marluce o cutucou, chamando:
– Moço, como é mesmo seu nome? É que já não me lembro bem do que escuto.
– É João.
– João. Você é diferente, João. Acho que você não vai gostar de São Paulo não.
João sorriu e não disfarçou o enfaro com aquela conversa repetida. Só quis foi falar da professora:
– Lá na minha cidade eu tinha uma professora que me ensinava as coisas todas. Professora Paulina. Ela me contou que o mundo é grande e que tem lugar para tudo nele. Que as estradas levam para todos os lugares, mas que é preciso pegar o carro, porque nossos pés não aguentam as distâncias, de tão grandes. Disse também que, para onde eu quisesse ir, eu encontrava a estrada. É por isso que estou indo, porque tem a estrada e o ônibus, e eu tenho vontade de ver o mundo todo. E eu vou gostar de tudo, porque gosto de tudo que ainda não vi.
A mulher ficou calada pensando. O moço era mesmo ruim das ideias, mas falava bonito e ela não sabia mais como desmenti-lo. Até que falou, como num susto de descoberta da verdade:
– Mas e se você descobrir que o que tem lá você já viu antes? Que tudo nesse mundo é sempre a mesma coisa, o mesmo sofrimento que vai matando a gente, todo dia, em qualquer lugar?
– Mas isso é que não é. É só olhar pela janela para ver que o mundo muda, a cada passo da estrada o mundo muda, é só olhar – João apontava a janela, quase forçando-a a olhar para fora. Mas ela, se olhava, era de soslaio e quase não via nada; ou melhor, via só a poeira que sujava o ônibus e endurecia seu cabelo já duro e gasto pelo tempo; e só confirmava o que já sabia: o mundo era um só, em qualquer lugar, e o moço, coitado, tinha a cabeça frouxa de tanto pensar no que não há.
Marluce se calou, com a bíblia nas mãos, e fechou os olhos. Logo cochilava e, mais uma vez, o livro lhe caía das mãos. Desta vez João não o pegou. Deixou onde caiu, cansado que estava de repetir o que já tinha feito antes. João se lançava todo para o futuro, como um aventureiro que não carrega o peso do passado, mas apenas a ânsia de ver o ainda não visto. E João sorria sentindo o vento que lhe esfriava o rosto, porque pensava que o mundo era bonito. Bonito como o sorriso de Clarinha.
Adormeceu pensando que depois da próxima noite pisaria pela primeira vez o chão de São Paulo. A maior cidade do mundo. Marluce disse que não, que não era a maior. Mas João não tinha escutado. Era sim, São Paulo, a maior cidade do mundo.
Quando acordou de um sono partido, o dia amanhecia e o céu era todo um azul suave que coloria o ar da manhã. À medida que a manhã avançava e ônibus corria pela estrada, o ar ia mudando aos poucos, o vento ficava mais frio, a estrada fazia mais curvas. Lá para o meio do dia, João sentia o corpo tombar com o balanço mais forte do ônibus, que agora parecia um barco em alto mar, virando de um lado para o outro, subindo e descendo. João olhava pela da janela aberta e o que via inundava seu coração de alegria: a estrada era cheia de curvas e de subidas e descidas como nunca tinha visto antes. O mundo que conhecia era um plano sem fim, um chão reto e largo recheado sempre das mesmas pequenas plantas. Agora, não. Agora era um mundo retorcido e cheio de curvas e altos e baixos, uma beleza. A estrada estreita não dava espaço para que o ônibus saísse de seu exato rumo. Só o pensamento de João vagava por entre as pequenas trilhas que vez ou outra descobria na beira da estrada. Que pessoas viveriam por ali? João se perdia imaginando a vida miúda de gente como ele, entre as subidas da estrada. Numa curva muito longa, toda ela em descida muito forte, João viu uma família sentada numa pedra, à espera de alguém, de um outro ônibus qualquer, de uma carona. Era um homem velho, magro, com a barba por fazer e o olhar cansado, uma mulher mais velha ainda, o cabelo grisalho preso numa trança comprida, uma mulher mais jovem, só que com o ar ainda mais cansado do o da outra que devia ser sua mãe, e três crianças pequenas, também sentadas. João os viu por apenas um relance, mas o suficiente para guardá-los como num quadro em sua mente. As crianças, dois meninos e uma menina, pareciam também cansados, e João se perguntou sobre porque estavam tão parados, com um mundo todo por percorrer. João quase viu, mas era o que não queria ver e então fez seu pensamento fazer outras perguntas, mas quase viu a tristeza deles todos; e se tivesse saído do quase e se deixado invadir pelo que via, talvez devesse olhar para Marluce e pensar como ela: o mundo era sempre o mesmo, porque em toda parte se sofria igual. Mas João saiu de perto desse quase e se deixou levar pela curiosidade sobre como seria a casa deles e para onde estariam indo. Por certo era um passeio por perto, pois quase não tinham bagagem. Nem lhe ocorreu pensar que talvez a pouca bagagem fosse tudo o que tinham. Escutou foi um barulhinho de água ao longe e imaginou que alguma cachoeira se escondia por ali. Talvez. Ou talvez fosse só sua imaginação que criava todas as coisas boas desse mundo.
Quando o ônibus parou para o almoço, João desceu contente, à espreita do que poderia descobrir de novo. Estavam em Minas Gerais, já muito perto de São Paulo. Marluce saiu do ônibus atribulada e cansada da viagem e, pela primeira vez, despertou em João uma compaixão sincera. Por trás da antipatia que lhe causava o jeito duro com que ela insistia em ver no mundo só a feiúra da dor, ele conseguiu ver o peso da idade e do cansaço, a desesperança sofrida de quem da vida só tinha ganhado o mínimo. Enquanto segurava a bolsa e a observava vestir o casaco com dificuldade, João se enterneceu e a convidou para sentar com ele para o almoço. Marluce o olhou agradecida, porque realmente o peso da viagem longa já lhe pesava nos ombros, e ter alguém para conversar era já um tantinho de sossego. Sentaram-se numa mesa pequena, pediram o prato feito, que era o mais barato que encontraram. Tudo ali era mais caro do que nos outros pontos da estrada. Marluce explicou:
– É assim, moço, quanto mais vamos descendo, quanto mais perto de São Paulo estamos, mais caras as coisas vão ficando. Porque por aqui todo mundo pensa com a cabeça do dinheiro. Não é como lá no sertão, não, onde a gente ainda consegue pensar com a cabeça da amizade. Aqui é assim: cada um quer ganhar o seu dinheiro, e não importa se para isso é preciso tirar de alguém.
João de novo se impacientou com a companheira de viagem, mas ficou quieto, guardando um silêncio que o sossegava. Pensou em Marluce como uma senhora que não teve sorte na vida. E pensou que não desistiria nunca de procurar por sua sorte.
Voltaram para o ônibus já sentindo a proximidade do fim da viagem. E João sentiu de repente uma pontada no coração. Estava longe, muito longe de casa. Passara já duas noites no ônibus e duas noites poderiam ser uma vida. João não entendia, mas sentia o peso da distância alongando o tempo dentro dele. Parecia que uma vida inteira tinha se passado desde que entrara naquela viagem deixando para trás as pessoas todas que conhecia no mundo. E o próprio mundo em que tinha vivido cada um de seus dias tinha ficado na poeira da estrada que o levava para a frente. E na frente apenas procurava aquilo que tinha preenchido sua vida de desejo desde sempre: o mundo novo. Ah, o mundo novo que o salvaria da terra vermelha em fogo que lhe queimava os olhos que não desgrudavam da estrada. A professora tinha dito: vai, João, que o mundo é grande. Grande como quê... E João quase sabia que pequeno era ele mesmo e que para um ser pequeno um mundo grande pode ser grande demais. Mas aí lançava rápido o olhar para o rumo da estrada e parecia que ainda estava lá, na janela de seu quarto. João e a janela.
Lembrou-se então do dia em que Clarinha chegou correndo como criança perdida e parou sorrindo em frente à janela do quarto. Ele, num instante, pulou para fora e a abraçou limpando o suor que lhe fazia brilhar o rosto ainda mais, que já seu sorriso o fazia brilhar. Perguntou sorrindo o que a trazia assim, nessa pressa toda. E ela contou: João, vem ver, chegou um circo na cidade, parou na beira da estrada e está lá, montando barracas, vem! Ela falava e sorria e chamava e João se alegrou também. Voltaram juntos pela estrada e só pararam em frente à festa que já se armava em torno das lonas e dos bichos e dos artistas. O povo todo da cidade ia chegando, que um movimento desses era muito raro por lá. João chamou Clarinha para ficarem um pouco mais longe e se sentarem numa pedra grande, do outro lado da estrada. Ela viu logo a tristeza nos olhos dele, mas não entendeu.
– João, você não gostou não? É tão bonito esse povo todo aqui, curioso para ver a novidade, e você triste assim...
E João mesmo não entendia a tristeza que só fazia crescer em seu peito. Era como uma planta estranha e desconhecida que de repente surgia em terreno preparado para se plantar outra coisa, mais bela. No lugar da alegria que Clarinha procurava, a tristeza estranha que não se escondia mais. Os olhos dele brilhavam na dor de não poder se alegrar. Até que pôde dizer:
– Eles vêm e logo vão embora outra vez. Vivem na estrada, e nós aqui estamos presos a essa terra queimada pelo sol que não se cansa. E o povo se alegra e o circo chega e vai sem levar ninguém com ele. A cidade fica parada e se alegra ainda na lembrança da novidade que veio e foi. Clarinha, eu não quero isso não. Não quero passar a vida parado esperando o circo que vem e vai. Eu quero ir, Clarinha.
E agora era ela quem se entristecia, porque sentia que João um dia ia mesmo embora e ela ficaria com seu sonho de passar a vida toda com ele e em cada circo que chegasse procuraria por ele. Mas João não voltaria. Não voltaria para buscá-la – ela sentia assim e quando dizia isso a ele, e ele negava, ela mais ainda se entristecia por ver que nem ele sabia que não voltaria.
E o que João sentia agora na janela do ônibus era a tristeza mais funda de saber que cada pessoa tinha um sonho diferente da outra, e que fazer juntar dois sonhos era coisa das mais impossíveis. E João sabia que Clarinha estava longe. E que quando fosse buscar por ela, talvez não a encontrasse. E ele quase quis voltar e deixar para trás a estrada que tinha sido seu desejo, e só viver no desejo de Clarinha, que, afinal, ele também sabia sentir. Mas seu coração ainda o empurrava para frente e, naquele instante, Clarinha ficou para trás. João sentiu uma dureza nova que devia vir do minério que cercava a estrada. Pedra e montanha, e João tampando com força os buracos que lhe surgiam na alma.
Era preciso seguir, e a estrada ainda convidava. João era um pássaro livre. E as asas eram seu coração que não queria se prender. E João já sorria outra vez respirando o ar da montanha. O sol caía enquanto a tarde passava lenta no correr da estrada. O destino da viagem se aproximava e João se alegrava como Clarinha naquela tarde guardada na memória.
Quando o sol se pôs, João pensou mais uma vez que quando visse a luz do dia outra vez, estaria em São Paulo, a maior cidade do mundo. Devia ser. A maior. João sabia, a maior. Se não fosse... Mas João sabia. E olhava sem dó para os últimos sinais da luz que se escondia atrás da montanha. E pensava nos prédios altos e pensava na janela do mais alto de todos de onde poderia ver Clarinha. Que mesmo que ela se perdesse dele para sempre, da última janela do último prédio ele ainda a veria. Porque Clarinha também era seu sonho.
E João sonhava. E sonhar cansava, além de alegrar. Mas João não deixava nunca o medo entrar completamente, medo que sentia era só insinuado, de esguelha. E seguia. Seguia a viagem que era o sonho maior, viagem para o mundo novo. O novo mundo – e João nem sabia que um dia essa terra toda tinha sido chamada de o Novo Mundo.
– Moço! João! Escuta aqui, moço! – Marluce o chamava ansiosa, João não ouvia, perdido que estava. Mas ela insistia – Moço!
Quando ele desviou o olhar da janela aberta e empoeirada, viu a companheira de viagem olhando-o assustada.
– Que foi? Que foi que aconteceu?
– Foi nada, estava só chamando para passar melhor o tempo, mas o moço não ouvia, pensei que passava mal, adoecido de tanto olhar essa janela.
João quase sorriu, mas guardou-se.
– E o que era para falar?
– É nada não, que agora até perdi o rumo do pensamento. O moço é esquisito demais.
João sentiu tremer a boca, numa mistura de raiva e susto. Medo?
Esquisito. Era mesmo esquisito e já tinha ouvido isso umas tantas vezes pela vida afora. Mas agora ali, só sentado no ônibus que o levava para São Paulo, quase sem falar. Que esquisitice era essa que transparecia até na rigidez do corpo parado na cadeira do ônibus?
– Esquisito como, dona?
E desta vez foi Marluce quem quis sorrir e não se deixou. Nem sabia como explicar.
– Esquisito assim de esquisitice mesmo. O moço não é como os outros.
– E como é que são os outros?
– Nem sei dizer. Mas sei que não ficam tanto tempo assim com os olhos colados numa janela.
E João pensou que aquela viagem não era nada. Que ele tinha passado era a vida toda lançado numa janela. E que, se isso era esquisito, então era porque ele era mesmo cheio de esquisitice.
– Mas por que isso é esquisito?
– Parece que o moço fica o tempo todo sonhando, vendo o que não existe.
– E o que é que não existe e que a dona pensa que eu vejo?
– Isso só o moço mesmo é quem pode dizer. É o quê, que você tanto vê?
– Vejo nada não, só o que tem mesmo ali, do outro lado da janela. Agora mesmo, antes da luz do sol sumir toda, eu estava vendo o contorno da montanha que desapareceu bem devagar no meio da escuridão. Estava bonito e não era sonho não.
– É sonho sim, que nada era bonito aí fora. É só um mundo velho e cheio de poeira.
Então João desviou os olhos de Marluce e continuou seu caminho, com o prazer do vento no rosto. Marluce se agarrou ao terço que tinha nas mãos e começou a rezar num murmurinho muito baixo. João não se irritou, até gostava da ladainha que o fazia lembrar-se das procissões em que seguia com a mãe pelas ruas da cidade.
E foi ouvindo Marluce, com a imagem da mãe preenchendo-lhe o pensamento, que adormeceu antes de ver a lua cheia. Marluce rezava sem olhar para o companheiro que agora lhe parecia mais um demônio do que qualquer outra coisa – rezava para se proteger do que não entendia.
Para Marluce o mundo era todo um só, e todo muito bem entendido. Para aquele moço João, que tanto a perturbava, o mundo parecia não ser nada além de um emaranhado de sensações que se renovavam sem parar.
Quando, mais tarde, João acordou, era Marluce quem agora dormia e quase roncava. João sorriu e não estava mais irritado. Alegrava-se, e muito, pois sabia que não demorariam a chegar ao destino. Destino... ele se agarrou nessa palavra como se dela pudesse vir todo o entendimento que nunca conseguia alcançar. Tentava agora entender: o destino era o fruto do que cada um construía, dia a dia, ou era antes a força intensa que levava cada a um a um rumo próprio? O destino era o fruto ou a raiz da árvore que era a vida de cada pessoa? E João não sabia se construía seu destino ou se era construído por um destino que o ultrapassava. E João nem sabia se era preciso pensar em Deus.
E se lembrava de Padre Antonino e das coisas que ele lhe falava. E se lembrou de que lhe dissera um dia que tinha a alma pura e que, por ser pura, já descansava em Deus. Mas não entendia o que o Padre queria dizer com aquilo. Então não eram todas as almas iguais à dele? Não eram todas as pessoas iguais e pequenas diante de Deus? E João, sem saber se era preciso, se perdia pensando em Deus, e não entendendo Deus. Mas sossegava porque não precisava de muito entendimento não. Era suave e se deixava deslizar para a janela outra vez.
A lua iluminava a estrada mais do que os faróis do ônibus. João via os contornos das montanhas que agora pareciam mais baixas. E de repente sentiu frio, e isso era novo. Vestiu a blusa grossa que tinha comprado especialmente para a viagem. O contato do tecido com seus braços protegendo-o do frio que vinha no vento foi gostoso como um abraço de Clarinha. Ah, Clarinha voltava a seu pensamento cada vez mais bonita, vai ver que era a beleza da saudade que já começava a pressionar por dentro o peito alegre de João. Mas ele se deixou levar de novo pela janela de onde vinha o frio e por onde escorregava o sorriso dela.
De tanto olhar acabou dormindo outra vez, para agora só despertar no final da viagem.
São Paulo.

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