quarta-feira, 16 de novembro de 2011

II

São Paulo, a maior cidade do mundo. João pisou em seu solo com a alegria guardada pela vida toda. De tão alegre, estava sério. Era uma alegria muito séria. Não era daquelas alegrias que se pode jogar fora numa risada. João pisou no chão de São Paulo com alegria séria. Respirou fundo e olhou em torno. Burburinho de vozes, pessoas amontoadas procurando bagagens e parentes e consolo. Vendedores de água passando apressados. Malas em montes pelo chão, crianças correndo no meio delas. Nenhum horizonte.
– Vamos, rapaz, pega sua mala, vamos.
João olhou sem pressa para o motorista que o apressava a pegar a mala, era a última do bagageiro, todos já tinham procurado seu caminho. João pensou em Marluce e ressentiu-se de não ter se despedido. Pegou a mala pequena, mas nova, e saiu andando pela rodoviária ainda sem pressa e sem medo. Era cedo, tinha o dia todo para encontrar um lugar para dormir. Tomou um café com pão e continuou a andar. Olhava como quem comia com os olhos; tudo em torno lhe nutria o desejo. O burburinho não tinha fim e ele não conseguia entender nada do que falavam a sua volta, tal era o excesso e a mistura das conversas todas. Pensou em falar com alguém, mas se conteve querendo guardar por mais tempo inalterada a alegria que o conduzia por entre pessoas e bagagens. Ouvia sotaques variados, mas o mais comum era o seu mesmo, a fala nordestina que invadia São Paulo.
Quando resolveu sair da rodoviária, sentiu um sopro novo. O ar da cidade, a rua, carros, o céu pesado de nuvens, a quase chuva fina. Respirou com força e agora sorriu levemente. O ar úmido o consolava da secura do sertão. Era novo sim, Marluce, o ar era tão novo que lhe queimava o pulmão. Respirou com mais força e sentiu o cheiro de gás dos carros. Achou gostoso o cheiro novo. Fechou os olhos e imaginou o carro que um dia teria rodando em direção ao prédio mais alto de onde veria o mundo todo... e Clarinha...
Caminhou pelas ruas se esgueirando por entre pessoas que andavam rápido demais, segurando a mala junto ao corpo para não atingir os outros. Andava como um ninguém pelas ruas lotadas que não o viam. Mas João via. Via cada canto de coisa. E sorria ainda.
Depois de andar por mais de uma hora, parou diante de uma placa amarela e envelhecida: pensão familiar. Entrou. O pequeno saguão de piso de tábua corrida, marcado pelo tempo, cheirava a suor e poeira. Dois sofás de tecido verde rasgado nos cantos enchiam o ambiente. Num deles, uma senhora magra e cansada fazia tricô. No outro, um homem jovem fumava e a olhava. No balcão uma moça de pele branca demais sorria para ele com o batom vermelho reluzente.
– Está procurando quarto, meu bem?
Depois de alguns instantes absorto na visão do tricô que gerava um tecido cor de abacate, João se voltou para a moça do balcão e, tomado pela visão do batom, aproximou-se.
– Sua boca está muito vermelha, moça.
– Você gosta, meu bem?
Não, João não gostava, e pensava nos lábios suaves de Clarinha, mas queria o mundo todo, e no susto de de repente gostar do feio só por ser novo, respondeu sem pensar:
– É bonito demais, moça, mas me espanta.
A moça então passou o dedo indicador na própria boca e depois nos lábios de João.
– Prove, meu rei, e vai gostar ainda mais.
João passou a mão nos lábios e ainda viu o vermelho em seu dedo. Lambeu e gostou do gosto. E estava todo trêmulo, como quem vê o que não consegue reconhecer. O corpo de João sentia por dentro o medo que agora se enroscava ao desejo. Mulher maluca. Mulher de São Paulo.
– E então, vai querer um quarto?
– Quero sim. Custa quanto?
– Quarto sozinho com banheiro e café com pão de manhã é 20. Quarto sozinho sem banheiro é 15. Quarto com mais um é 12. E quarto com mais dois é 10.
– Quero o de 10. Tem o café?
– Tem sim, e o banheiro fica no fundo do corredor.
– Tá certo. Como é seu nome, moça?
– É Maria do Socorro. Mas me chama de Méri, que é assim que eu gosto.
E João subiu a escada atrás de Méri, com os olhos em sua calça muito justa que deixava ver as marcas da calcinha. A blusa rosa choque também apertada deixava de fora parte dos seios. Quando abriu a porta do quarto e virou-se para João, eles se esbarraram e os seios dela tocaram o corpo de João que outra vez estremeceu por dentro. Ele segurou no batente da porta e olhou o quarto. Três camas com um espaço mínimo entre elas. Um guarda-roupa com três portas, uma delas vazia; as outras duas ocupadas e trancadas. Uma das camas estava vazia, com o colchão velho e duro exposto. E Méri saiu dizendo:
– Vou buscar toalha e roupa de cama e sua chave do armário.
João pôs a mala no chão e foi até a pequena janela na parede do fundo, entre uma cama e outra. Lá fora, as ruas por onde tinha andado, e o céu ainda pesado segurando a chuva. Méri voltou e colocou o lençol na cama vazia, a do meio. João se voltou para o quarto e, escorado de costas na janela, ficou vendo a moça se movimentar. Ficou vendo o corpo da moça se movimentar. E seu corpo se movimentava por dentro. E tudo era novo. E de tudo João ainda gostava. E o medo, se mexia com ele, não o assombrava. E quando Méri terminou de arrumar a cama, se aproximou dele para entregar a toalha.
– Não quer provar mais um pouco do batom, meu bem?
João tremeu mais e pensou em Clarinha e pensou na vida nova e pensou em São Paulo e pensou no futuro e teve sede de viver e encostou levemente os lábios no batom vermelho que gritava. E não entendeu quando a moça disse:
– Eu tenho um quarto só meu. À noite estou lá; você pode pagar quando arranjar emprego.
– Pagar?
Méri riu da cara de bobo do moço. Mas ele era bonito e tinha a boca quente e um corpo que parecia ter que aprender tudo. Sorriu mordendo os lábios:
– Não se apoquente não. Para você vou fazer de graça, até cansar. Só não pode vir na noite que tiver cliente com pagamento – e de novo encostou os lábios na boca de João, e dessa vez beijou com força – se quiser tomar banho aproveita que é cedo, o pessoal ainda não veio do trabalho e o banheiro está limpo.
Deixou João sozinho no quarto. Depois de alguns instantes, voltou para dizer que seu quarto era o único que tinha a porta pintada de rosa. João sentou-se na cama, ainda tremendo todo. As ideias todas embaralhadas na cabeça. Veio durante toda a viagem pensando na cidade, nos carros, no trabalho. Não pensou nunca sobre as pessoas; menos ainda sobre as mulheres. Méri parecia um furacão arrancando-o do chão. Tão diferente de Clarinha. E João então entendeu que não sabia nada de mulher e que nunca tinha sentido essa tremedeira antes. Tinha gostado de Miroca. Gostava de Clarinha. Namorada. Tinha andado de mãos dadas com ela, e beijado sua boca, e abraçado seu corpo. Mas era só isso. Nunca tinha ainda conhecido um corpo de mulher.
Com a cabeça rodando e o corpo tremendo e querendo, abriu a mala sobre a cama e tirou uma roupa limpa. Arrumou seu armário com calma, cuidando de fazer passar a confusão de sensações. O armário tinha duas gavetas pequenas e três cabides velhos. Era o suficiente para suas coisas, tão poucas. Pendurou as calças. Guardou as camisas, a bermuda e as cuecas nas gavetas. Por cima da gaveta mais alta deixou as coisinhas que tinha trazido como lembrança: um retrato de Clarinha, um caderno dado pela professora Paulina, o tercinho dado pelo padre, o lenço que a mãe comprara de presente para a viagem, e mais os bilhetes de Lindalva, de Clarinha e da professora. Deixou lá também os documentos e o pouco dinheiro que tinha. Trancou a porta e foi para o banho, que a poeira da estrada lhe pesava o rosto. Da porta do quarto até o banheiro, tinha que atravessar o corredor comprido. Quase no final do corredor, viu a porta rosa, entreaberta. Passou sem desviar o olhar da porta do banheiro e nem viu se Méri estava lá dentro. Mas agora sabia onde era o quarto e não conseguiria mais deixar de pensar nisso. Dessa vez, porém, passou direto e fechou-se no banheiro pequeno e abafado. Mas estava limpo, como ela tinha dito. Mais tarde, quando todos chegassem do trabalho, rapidamente não estaria mais assim.
João abriu a torneira e quase se queimou com a água. Era a primeira vez em sua vida que tomava um banho quente. Depois de alguns minutos mexendo na torneira, conseguiu esfriar um pouco a água, deixando-a morna. E então molhou o corpo inteiro. E foi muito bom, bom como um carinho que lhe afagasse cada canto da pele ressequida pela poeira. João ensaboou-se sem fechar a torneira e viu a água marrom que saia de seu corpo. Tocou o corpo inteiro, ainda assustado com a revolução causada por Méri. Mas a água e a espuma foram aos poucos acalmando-o, até que nada restasse endurecido. O corpo se aquietava e se adequava à mansidão da água morna. E João se lembrou do banho em sua casa. Água gelada e pouca, gotas esparsas que obrigavam o banho a ser demorado, mesmo nos poucos dias frios que às vezes vinham no fim de junho, quando chovia um pouco e o vento e a umidade faziam o calor ceder. E João gostava do frio que sentia lá no sertão, porque era raro e, por isso, novo. E João queria o novo, sempre. E quando sentia frio no chuveiro, gritava e pulava sob a água e o que era dor se transformava em brincadeira. João não se queixava. De nada. Nunca.
Nem agora, sob a água morna, se lamentava do chuveiro gelado de sua casa. Só por um instante pensou em como a mãe gostaria de um banho assim quentinho e se prometeu que levaria para ela um chuveiro elétrico e mandaria sempre o dinheiro para a conta de luz. E se prometeu que em sua casa com Clarinha haveria de ter também o chuveiro quente e que, quem sabe, até poderia um dia tomar um banho com ela. Mas agora pensou foi em ensaboar o corpo de Méri que parecia pedir por isso; era preciso apagar o vulcão. Mas pensar isso reacendeu seu próprio vulcão e João se inquietou outra vez e desligou o chuveiro. Enxugou o corpo agora limpo e fresco, vestiu a roupa limpa e voltou para o quarto. Deixou a roupa suja na cesta grande ao lado da porta, Méri tinha dito que lavava as roupas, mas não passava; quem quisesse passar, podia usar o ferro, e pagava um tanto a mais pela energia. João não precisava de roupa passada, só no dia em que fosse procurar trabalho. Deitou-se na cama e pôs o braço dobrado sobre o rosto.
Seus pensamentos corriam soltos entre alegres e apreensivos. Estava em São Paulo. Tinha andado pelas ruas cheias de gente, por entre os prédios grandes; tinha atravessado ruas por entre os carros. Tinha visto os ônibus e uma estação do metrô; tinha visto gente de todo tipo. E estava agora ali deitado na cama do meio de um quarto de pensão, sabe-se lá em que lugar da cidade. João não sabia onde estava, sabia só que estava em São Paulo, e que esse era o sonho. O sonho.
E João não sabia se poderia ainda sonhar. E, se sonhasse, qual seria o sonho. Estava agora dentro do sonho da vida toda. E não entendia o que sentia. Era bom, sim, mas não era só isso. Era novo, tão novo, que ele não sabia ainda entender. Seu amor pela experiência o deixava todo aberto, todo à espera do que a vida, ou o Deus, guardasse para ele. Mas sentia também uma coisa estranha, que não conhecia bem. Era o medo?
Ah, João sentia medo e de repente se lembrava do medo nos olhos de Clarinha, e do quanto nunca tinha entendido aquilo antes. O medo era tão novo quanto a água quente do chuveiro ou a boca vermelha e sedenta de Méri. João se inquietava mais e mais e não sabia o que fazer com o que o perturbava por dentro. Queria tocar forte com os dedos no batom exagerado de Méri. Queria dizer para Clarinha que agora sabia o que era aquilo que lhe turvava os olhos. E para a mãe que agora sabia o que lia em seu rosto quando o olhava absorto na janela do quarto. João era estranho e a mãe temia por essa estranheza. E agora estranho lhe parecia o mundo. Mas nem por um instante desejou voltar. Estava era pinçado pelo medo. E o medo parecia ser ao mesmo tempo um convite e a negação do convite.
E então de repente sentiu fome. Pôs um dinheiro pouco no bolso, trancou o armário e a porta do quarto e desceu as escadas. Ainda do alto pôde ver o decote dela e o arrepio voltou ao corpo assustado. Ia passar calado pelo balcão, mas ela o chamou:
– Gostou do banho, meu rei?
Ele fez que sim com a cabeça, quase sorrindo sem querer. E ela o achou mais bonito ainda, com aquele cheiro de banho e aquela pele de criança que ele tinha, e até da vergonha que ele sentia ela gostou.
– João, você é bonito até demais, sabia disso?
E João parado olhando para ela na frente do balcão velho e descascado sentiu o calor subir de novo pelo corpo e fazer seu rosto pegar fogo. Méri riu.
– Fique assim não, meu bem, eu não quero te fazer mal. Quero fazer só bem para você, você não acredita não? – e passou o dedo indicador pela boca dele, e suas unhas também eram vermelhas e grandes, e João tremeu mais e saiu andando, dizendo baixo que ia sair para comer.
Méri tentou dizer que podia fazer um lanche para ele, mas o telefone tocou e ela não pôde segurá-lo mais. E ele saiu andando devagar, sem rumo, e até sem sentir a fome que o tinha feito sair. Mulher doida, aquela. Pensou em desistir de ficar na pensão, procurar outra, que na cidade toda devia ter uma porção daquelas. Mas sem pensar sorriu e sentiu que não, que queria mais era ficar perto dela até entender aquilo tudo que estava sentindo. João, do pouco que entendia do mundo, sabia de uma coisa: queria entender até o fim as coisas que sentia. E, depois de entender, seguir com elas até o fim. Foi assim com aquela vontade de ir embora do sertão. Sentia desde pequeno aquela inquietação, aquele amor pela janela e pela estrada, até que veio o jeito de entender que aquilo tudo era vontade de ir embora, conhecer a estrada e outros cantos, e veio a tentativa de sair andando e a compreensão de que não podia ser daquele jeito, que era preciso dinheiro e tempo, e veio a paciência de esperar o tempo e o dinheiro pouquinho que ia juntando até ter dezoito anos. E agora estava ali, com o desejo realizado nas mãos, e vinha então a inquietação nova. E era coisa de mulher. E João nunca tinha se preocupado com isso, tão ocupado tinha passado a vida planejando a viagem.
E veio a lembrança do dia em que Clarinha tinha dito que ele arranjaria outro amor em São Paulo, e que ela ficaria lá, feito boba, esperando por ele. E a resposta que ele tinha dado: eu gosto é só de você, tira essa coisa besta da cabeça. E agora ele estava ali, tomado pela presença da mulher doida como se fosse um laço. Mas era amor não, Clarinha, que quero ainda é buscar você para o nosso casamento, ele pensava em desassossego, alguma coisa já dizendo que o que tinha ficado para trás logo se perderia na poeira do tempo.
Entrou num restaurante pequeno a uns três quarteirões da pensão e pediu um prato feito. Comeu sem pressa, olhando a rua. Era quase noite e o movimento estava mais intenso, as pessoas saindo do trabalho, voltando para casa. Andavam com pressa, sempre com pressa, e João tinha aprendido a calma, que no sertão não adianta ter pressa, tudo corre em seu ritmo próprio e ninguém é capaz de interferir no tempo da natureza. O pai plantava e esperava, a mãe plantava com o pai e rezava pela chuva, e rezar é um jeito de esperar, João plantava e sonhava, e sonhar era também uma espera. Muito tinha esperado para estar ali, comendo sem pressa, olhando as ruas de São Paulo. Era bonito. Bonito porque cheio de gente e carros e prédios e casas. Mas o céu era pequeno e quase não se viam as estrelas, mesmo numa noite clara. João não entendia bem e ainda olhava para o céu, à procura dos brilhos todos da noite do sertão. E sem querer pensou que o céu de sua casa era mais bonito do que o céu de São Paulo. Mas logo pôs de lado a pontinha de inquietude que sentiu, pensando que do alto do prédio mais alto haveria de ser diferente.
Viu então passar um ônibus lotado e pensou que amanhã iria passear de ônibus para ver mais e mais ruas. Alegre por ter um plano para o dia seguinte, começou a andar de volta para a pensão. Fez um caminho longo, dando voltas para mais sentir as ruas da cidade; ou para retardar o momento de ver Méri outra vez. Passou por uma família, pai, mãe e três crianças, todos com roupas sujas e mal cheirosas, sentados no chão entre panos velhos e jornais, comendo uma comida feia e fria com as mãos. Parou diante deles sem saber como continuar a andar. Seus olhos molharam-se e teve ímpeto de sentar com eles e, ali daquele chão, ver o movimento da rua. Mas não se sentou. Apenas olhava-os com o coração comprimido e a impressão de que alguma coisa estava fora de lugar. O menino maior o olhava também, devia ter uns nove anos e João se lembrou do menino que era, colado em sonhos à janela do quarto. E tentou imaginar que sonhos aquele menino poderia ter ali. O menino então cutucou o pai, apontando João.
– Que é que tá olhando aqui?
– É nada não – e João saiu andando envergonhado por ter uma cama, um teto e um chuveiro quente.
Quando chegou na porta da pensão, hesitou um pouco antes de entrar. Méri era vida exuberante, e João estava tomado por uma tristeza estranha. Mas entrou e procurou por ela no balcão. O que viu foi uma mulher de cerca de cinquenta anos, cabelo grisalho preso em um coque, alta e grande. Olhou para ela inquieto.
– Você deve ser o rapaz que chegou hoje, não é? Minha filha me falou de você.
Filha? João se sentia cada vez mais perturbado pelas coisas que via e ouvia e que não encontravam lugar de repouso entre tudo o que já tinha aprendido na vida. O quarto da porta rosa seria próximo ao quarto da mãe? João pensava quase sem se entender, imagens vagas passavam por sua mente. A família na rua, mãe e filha vendendo o corpo numa pensão familiar, pessoas passando com pressa. E João não tinha pressa. E João queria entender. E procurar por seu caminho.
Depois de alguns segundos, olhou-a e até achou que se parecia com Méri.
– Sou eu sim, estou no quarto doze. Me chamo João, cheguei hoje em São Paulo.
– Seja bem-vindo, João. A casa é sua. Méri gostou muito de você.
João sentiu o rosto corar, abaixou o olhar e foi andando para o quarto. Encontrou a porta entreaberta, os outros deviam ter chegado. Abriu devagar e viu um homem alto e forte, mais velho do que ele, encostado na janela com um cigarro aceso nas mãos. Sentiu-se pequeno diante de homem tão grande, e uma sombra de medo o cobriu. O homem, no entanto, assim que o viu, abriu um sorriso largo e o chamou para dentro:
– Então você é nosso novo companheiro. Entre, venha, não fique avexado não. Meu nome é Tonico e estou aqui há um mês. Vim de longe, lá do sertão do Ceará.
João sentiu um alívio imenso e sorriu também:
– Eu também venho de lá, cheguei hoje cedo. Meu nome é João.
Entrou no quarto e sentou-se em sua cama, ainda olhando o homem alto e forte. Não parecia um nordestino não, era grande demais para isso. Tonico também o olhava, curioso, olhos muito vivos, corpo enérgico.
– Me diga, João, o que é que você veio procurar aqui em São Paulo?
– Eu vim trabalhar e conhecer essa cidade, a maior do mundo.
Tonico sorriu outra vez, sentindo a primeira pontada da ternura que viria a nutrir por aquele rapaz sem jeito e perdido no chão de São Paulo.
– É a maior nada, garoto. Devem ter umas três ou quatro maiores. A maior de todas é a Cidade do México. Eu já fui lá.
Os olhos de João brilharam como duas pequenas bolas de fogo. Cidade do México, ele nunca tinha nem ouvido falar, e o homem, ali na sua frente, já tinha ido lá. Conhecia o mundo e as estradas todas. Tonico continuou, vendo o interesse do moço:
– Já viajei muito por esse Brasil todo, e uma vez continuei na estrada quando acabaram as terras brasileiras. Eu estava trabalhando lá na floresta amazônica, e fui subindo, passando por outros países, Colômbia, Venezuela, depois entrei na América Central, vários paisinhos, umas titicas de nada, e fui subindo, até chegar no México. Ah, João, o México é bonito, eu gostei demais e quando cheguei na capital arranjei foi um namoro com uma mexicana muito bonita e fiquei por lá. Ela me ajudou a encontrar trabalho num restaurante e eu fui ficando. Morei lá pra mais de três anos. Quando minha morena deu de não me querer mais, arrumei minhas coisas e vim embora de volta pra minha terra. Cheguei de volta no Ceará ano passado. Fiquei lá fazendo roça com meu pai, mas depois vi que não aguentava não, que queria era ver o mundo de novo. Aí vim pra São Paulo. Já morei aqui outras vezes, já tive até família aqui. Tenho uma filhinha de dez anos, vou visitá-la amanhã. Quer vir comigo? Assim você vai conhecendo a cidade.
João já nem ouvia direito o que Tonico dizia. A quantidade de coisas novas que tinha ouvido naquele primeiro dia já não cabia mais dentro de si. Respondeu sem pensar que tinha pensado em andar de ônibus pela cidade. Tonico respondeu que estava ótimo assim, pois eles iam mesmo de ônibus, um ônibus e mais um pedaço de metrô, até a casa de Waldislânia.
Waldislânia. João ficou com esse nome rodando na cabeça. Era um nome grande e estranho demais para uma criança. Era tudo novo, grande e estranho. A cabeça de João girava como um carrossel, sem música, nem diversão. Deixou-se deitar na cama e nem viu quando Tonico desceu. Parece que cochilou por alguns minutos, despertou com um barulho no armário. Era o outro morador do quarto. Negro, muito magro, estava sem camisa, cabelo pingando água, toalha jogada no ombro, de costas procurando algo no armário. Quando se voltou para o interior do quarto, viu João o olhando. Fez um aceno com a cabeça, mas não disse nada. João também não conseguiu dizer nada, e continuou olhando-o curioso, mas sem coragem de enfrentar mais um acesso de novidades, não antes de pelo menos dormir uma noite na cama, depois daqueles dois dias na estrada.
Estavam ainda em silêncio quando Tonico voltou.
– Então já se conheceram, João e Bráulio – e voltando-se para João, em voz bem baixa – não se assuste com ele não; é calado assim, mas parece que não faz mal a ninguém.
Bráulio acabou de se vestir e desceu sem dizer nada. Tonico continuou:
– Ele trabalha o dia todo, chega tarde. Vai lá embaixo, come uma coisa no bar do lado, vê um pouquinho de televisão e vem dormir. De vez em quando, trabalha a noite toda. No domingo vai para o bar e, às vezes, não vem dormir, aparece na segunda de manhã, troca de roupa e vai para o trabalho. Deve arranjar uma namorada por aí.
João ouvia exausto, sem dizer nada.
– Parece que você precisa dormir, não é, João? Vou te deixar em paz.
Tonico já estava quase fechando a porta e João se sentou na cama com a vontade repentina de fazer uma pergunta:
– Tonico, volta aqui só um minuto.
Tonico voltou surpreso e curioso.
– Diga.
– Essa moça, a Méri. O que você acha dela?
– Hum, o moço não perde tempo. É bonita ela, não é, com aquele decote sempre deixando ver o que tem dentro, eu gosto muito dela, João. Mas por que você pergunta?
– Ela me disse pra ir no quarto dela, que pra mim ela faz de graça.
– Gostou de você, a danada. Vai lá rapaz, mas amanhã, que hoje, do jeito que está, não vai conseguir nada.
Tonico sorria malicioso e João não entendia nada de nada. Conseguir o quê, meu Deus? Vendo a expressão de espanto do moço, Tonico só disse ainda que descansasse, e que amanhã conversariam mais. Saiu do quarto e João se trocou. Arrumou a cama com cuidado e deitou-se para dormir. A cabeça rodava, as ideias não encontravam pouso, nada se encontrava com o que trazia da vida no sertão. Um dia só em São Paulo, e parecia toda uma vida. Uma vida nova que vinha desconcertar a vida vivida antes. Era como estar no meio do vendaval sem ter onde se segurar. João não sabia se estava feliz. Estava ali, pisando o chão com o qual sonhara por anos, e não se entendia. Não que se arrependesse, não era isso. Não voltaria para casa, sabia que estava em seu rumo nessa vida. Mas estava perdido e não se reconhecia. A lembrança da vida antiga estava muito longe, até o sorriso de Clarinha se perdia no vendaval. O que via de perto eram as coisas todas que vira e ouvira nesse dia, único dia, e que passavam voando perto de seus olhos e de seus ouvidos sem se deixar apanhar. Era um susto.
Acabou adormecendo antes que a cabeça encontrasse algum pouso. O cansaço do corpo gritava. Lá embaixo, Tonico conversava com Marileide, a mãe de Méri. Bráulio via televisão calado, outros moradores e hóspedes iam e vinham. Mais tarde a casa toda dormiu e o silêncio ajudou o descanso de João, que nesta noite sonhou com a imagem da porta rosa do quarto dela.
No dia seguinte acordou com os primeiros sinais da luz do sol, como sempre acontecia em sua casa. Abriu os olhos e, por um instante, apenas se alegrou. Amanhecia em São Paulo, que para ele ainda era a maior cidade do mundo. Bráulio não estava mais na cama, Tonico dormia. João deixou-se ficar por mais um tempo apenas olhando o teto sujo e deixando a imaginação correr. Até que voltou à sua mente a imagem da porta rosa no sonho, e logo a imagem de Méri. Imediatamente então, sentiu vontade de levantar. A inquietude da noite tinha passado e, saído da perturbação, João entrava agora em um estado de intensa curiosidade: queria ver de perto tudo o que tanto o incomodara ontem.
Foi ao banheiro rapidamente e desceu as escadas procurando por ela. Mas, outra vez, quem estava no balcão era a mãe.
– Bom dia – ele foi dizendo, muito decidido – a senhora me desculpe o mau jeito de ontem, eu estava muito cansado. Como a senhora se chama?
– Marileide. Não se desculpe não, eu vi mesmo que o moço não estava se aguentando em pé. Venha, venha tomar o café.
Levou-o então à copa que ficava no cômodo atrás do balcão, e que João não tinha visto ainda. Méri estava lá, servindo o café. Bráulio estava sentado em uma mesa no canto, sozinho. João pensou em sentar-se com ele, mas desistiu quando Méri o chamou para sentar-se com ela em uma mesa perto da porta da cozinha. Em cada mesa, uma xícara e um prato pequeno. Na mesa grande no canto do cômodo, uma garrafa de café, outra de leite, um cesto com pão e uma manteigueira. Mas a moça disse a ele que, se quisesse, poderia lhe preparar um ovo e eles podiam comer na cozinha, ninguém ia notar. João agradeceu e disse que não precisava, que preferia comer como todo mundo. Pegou seu café com leite e seu pão com manteiga e sentou-se à mesa com Méri. Ela o olhava.
– Tá ainda mais bonito hoje, João, com a cara alegre que faz gosto. Teve um sonho bonito, foi?
Ele só sorriu e não soube o que dizer. Não ia falar da porta de seu quarto em seu sonho. Não ia dizer que era alegre assim mesmo, mesmo sem razão de ser. Ou que se alegrava por estar em São Paulo, depois de ter planejado isso por muitos anos. E nem ia dizer que estava alegre porque ela estava ali com ele. De vez em quando, ela se levantava, quando alguém lhe pedia alguma coisa, mas logo voltava e puxava nova conversa com João. Até que ele perguntou o que estava querendo saber desde ontem:
– Seu pai também mora aqui, Méri?
– Não tenho pai não, João. Sou só com minha mãe nesse mundo. Cuidamos aqui da pensão, nós duas, e ela me ensinou a ganhar a vida.
João não entendeu o que ela quis dizer, mas pressentiu que era melhor não fazer mais perguntas. Estava ali quieto, olhando para ela, quando Tonico entrou fazendo barulho e se sentou com eles.
– Bom dia, meu rapaz, bom dia, Merizinha, dormiram bem? Eu dormi como uma pedra, me preparando para ir ver minha princesa. Você vem comigo, não é, João? – Ele assentiu com a cabeça, ainda que um pouco assustado com o jeito expansivo demais de Tonico. Mas queria ir, conhecer mais da cidade com alguém que conhece todos os seus caminhos, ver a filhinha dele, ver uma casa de família, uma vida comum naquela cidade enorme que era um mundo.
Méri se levantou e foi para a cozinha preparar mais café. Tonico olhou para João com malícia:
– E então, marcaram o encontro de hoje à noite?
João abaixou a cabeça, envergonhado.
– Não se avexe não, rapaz. Ela gostou de você, tem que aproveitar.
– É que nunca estive com mulher – João respondeu sentindo o rosto corar e olhando Tonico de soslaio – eu tenho uma namorada lá em minha cidade, Clarinha, e gosto dela e quero voltar para buscar ela uma dia, mas nós nunca...
– Nem precisa dizer, eu já estava desconfiado disso. Pois então, é por isso mesmo que você precisa de uma moça como Merizinha, que conhece tudo da arte e vai poder te ensinar. E, se gostou de você, vai ensinar melhor ainda.
– Mas e Clarinha? Não posso logo ir me deitando com uma mulher aqui, nem mesmo falei ainda com ela pelo telefone depois que cheguei, nem escrevi para ela ao menos um cartão.
– Mas João, uma coisa é diferente da outra. O que você aprender aqui, vai um dia poder ensinar pra sua Clarinha.
E João se chateava, mas era por perceber que Clarinha ia ficando cada vez mais longe em seus pensamentos. Parece que os fios todos que o ligavam à vida antiga estavam prestes a se romper. E João logo estaria perdido, lançado no mundo imenso e sem forma de São Paulo. E tudo seria novo, e tudo teria que ser construído desde as bases, e João não sabia como.
Tonico se levantou, chamando para irem logo, que a casa de Waldislânia era muito longe. Na porta da rua, Méri os alcançou e chamou por João. Ele se voltou e ela estava muito junto dele, quase roçando o decote em seu corpo sem sustentação.
– Vou te esperar essa noite, viu?
João abaixou o olhar e não respondeu. A moça em um instante percebeu o vermelho na face dele e o sem jeito de seu olhar. Entre admirada e satisfeita, continuou:
– João, meu bem, você é virgem? É isso, não é? Não se preocupe não – e levantou o rosto dele tocando de leve o queixo com seus dedos, e as unhas vermelhas ficaram muito perto do olhar de João, e o vermelho do rosto correu pelo corpo todo e João não se reconhecia – então, posso te esperar?
Ele fez que não com a cabeça e saiu andando, seguindo Tonico que caminhava devagar. A moça voltou para a copa sem se importar com a rejeição. Sabia que conseguiria, que um moço tão jovem e sem saber de nada não ia rejeitar seu oferecimento, precisava era de caprichar mais no batom e no decote, comprar um perfume novo, quem sabe deixar de presente na cama dele uma foto com um cartão. Mas logo desviou o pensamento ajeitando o café e os pães.
Tonico e João caminhavam para a estação do metrô. Quando desceram as escadas através do buraco no chão, João teve medo.
– Nós vamos descer para debaixo do chão, Tonico?
– Vamos! É bonito isso, não é, João? Vem, tenha medo não, é muito bom o metrô.
E João se perdia olhando o formigueiro de gente que entrava e saía com pressa, sem tempo de olhar para o lado, ou para o céu, ou mesmo de se perguntar se não era estranho andar debaixo da terra como as minhocas e as formigas. E então uma forte imagem veio vindo do fundo de sua infância, ele muito pequeno correndo com Firmino e Carlinho pelo mato, e de repente escutaram um choro muito alto, voltaram pelo mesmo caminho e encontraram Taninha, a irmã mais nova, pouco mais velha que João, caída em cima de um formigueiro, o pé torcido, não conseguia se levantar, e as formigas por todo o corpo dela; Firmino, que nunca teve medo de nada, tirou a camisa e foi com o pano espantando as formigas, e depois pôs a irmã no colo e a levou até a casa, e ele nem era muito maior do que ela, maior era mesmo a sua coragem e o seu jeito de fazer o que tinha que ser feito, sem se perder no pensamento. E João entendeu que ele não era como Firmino, que sua perdição vinha do de dentro dele e que a vida no mundo era ainda um sonho porque era o sonho que o fazia andar. E estava ainda parado no alto da escada, a alma toda voltada para o mato da infância, quando viu Tonico gritando por ele lá embaixo, já quase perdendo a paciência. Desceu correndo e o alcançou num instante. Compraram as passagens e andaram até o local onde pegariam o trem. E João espantado ainda com a gente toda que cabia ali no buraco do chão, e com o barulho quando um trem passava nas outras linhas – estavam em uma estação muito grande, onde passavam três linhas do metrô. E, depois do espanto, o que sempre o atingia era o gosto de estar ali, vendo o que nunca tinha nem imaginado, que lá na sua cidade ninguém nunca tinha lhe contado nada sobre os buracos do chão de São Paulo. E o gosto o tomava e ele sorria e Tonico também sorria pensando que esse menino era mesmo muito diferente.
Porque Méri tinha razão: João era virgem, no corpo e no olhar, e tudo o que via, para ele era novo, e ele não herdava do mundo o jeito de compreender as coisas, tinha que compreender tudo sozinho, a partir do de dentro dele.
E era assim, começando a entrever os jeitos de compreender São Paulo, que João seguia em pé no metrô lotado. Saíram do trem depois de uns quinze minutos de viagem e caminharam até um ponto de ônibus. E a cidade não acabava, o horizonte era sempre o mesmo mar de prédios. Lembrou-se por um instante de sua companheira de viagem dizendo que São Paulo era uma cidade de pedra. E era isso, cidade de pedra, mas João não se entristecia por isso, achava era bonito, pois passara a vida toda vendo sempre o mesmo terreiro diante de sua janela, o mesmo mato ralo onde brincava e sonhava, a mesma estrada vermelha, o mesmo sol que nunca se cansava. Ali em São Paulo, não. Olhando de longe, Marluce, era sim uma cidade de pedra, mas andando pelas ruas, era uma coisa nova atrás da outra, era gente que não tinha fim, eram cores, falas, tudo multiplicado por mil, tudo acontecendo ao mesmo tempo. E, se João se assustava, e às vezes parecia quase explodir de tão inchado por tudo de novo que entrava nele, logo absorvia o que via, e sorria e sabia que era isso mesmo o que tinha procurado.
Entraram no ônibus também lotado e seguiram nele por mais de uma hora. E a cidade não acabava, e o horizonte não mudava. Seguiram calados com o sol forte na cara e o cheiro quente de tanta gente junta. Depois de certo ponto do caminho, o ônibus começou a esvaziar e puderam se sentar. E Tonico então contou a história da filha. Tinha dez anos e sua mãe, Laurinda, era bonita e forte, e tinha sido sua mulher por mais de cinco anos. Nesse tempo Tonico tinha assentado o pé em São Paulo, pensando viver ali a vida toda. Foi morar com Laurinda, pensou que iam construir uma família. Tiveram Waldislânia, tinham trabalho, uma casinha boa, amigos, tudo correndo certo e bem. Até que Tonico conheceu um homem que vivia viajando pelo Brasil, trabalhando aqui e ali em grandes fazendas, consertando máquinas agrícolas, e o convidou para seguir com ele; precisava de um ajudante e assim Tonico poderia aprender o ofício. Tonico ficou dividido, porque sabia que Laurinda não ia querer essa vida, que ela gostava demais da tranquilidade que tinham, e do trabalho, e da casa, e dos vizinhos. E Tonico pensou que não tinha jeito, mas começou a entristecer, dia e noite pensando na proposta, dia e noite sonhando com a estrada, com os lugares novos que poderia conhecer, e depois pensava na filha que só tinha dois anos e a quem, se partisse, não veria crescer. Até que decidiu arriscar tudo. Foi embora com pouco mais do que a roupa do corpo. Deixou dinheiro para muitos meses, e sempre que podia, mandava mais. E voltava a São Paulo quando calhava de ter um trabalho por perto e a menina crescia e ele sempre partia outra vez. Quando ela tinha quase quatro anos ele seguiu para muito longe, e ficou aquele tempo grande no México e depois quase um ano com o pai. E agora já estava em São Paulo há um mês e ainda não tinha tido coragem de procurar Laurinda e a menina. Muitos anos tinham se passado, teve medo de que nem se lembrassem dele. Então, hoje, com João do seu lado, iria reencontrar a filha depois de mais de seis anos sem vê-la.
João ouvia calado, sentindo um peso no meio do peito, como se imaginasse que poderia acontecer uma coisa assim com ele também. O peso da distância que vai corroendo por dentro o que nos liga às pessoas.
Quando Tonico parou de falar, estavam os dois com o peso da tristeza no rosto. E a mesma vontade de conhecer coisas novas, e era por isso que Tonico tinha se afeiçoado ao garoto. E João então se distraiu olhando pela janela, como na viagem. A cidade agora mudava um pouco, não se via mais prédios, a não ser bem baixos, de dois ou três andares. E muitas casas simples, pequenos comércios que mais pareciam as vendas de sua cidade. O ar menos pesado, o trânsito menos barulhento, gente andando sem pressa pelas ruas. Estavam na periferia e o ar era como o de uma cidade pequena, e isso foi para João uma surpresa, e um motivo simples para mandar para longe a tristeza.
– Como é diferente aqui, Tonico.
– Aqui é a periferia, quer dizer que estamos muito longe do centro da cidade. Aqui é mais pobre e não tem todo o conforto da cidade. Mas é menos poluído e vemos mais o céu.
– E é mais calmo.
– Não se engane, não, João. Nada é calmo em São Paulo. Essa calmaria esconde um burburinho que não para. E tem muita gente ruim aí, onde a gente menos espera. Tem muita violência por aqui, muita droga, muita briga.
– E é por quê isso tudo, Tonico?
O homem sorriu da candura do menino, e não respondeu nada, que já estava na hora de descerem do ônibus.
– Vamos, deixa essa conversa para depois.
Andaram por cerca de quinze minutos até finalmente alcançar a casa de Laurinda. Ficava no alto de uma colina, era uma casa pequena, toda pintada de amarelo, até as janelas. Um amarelo já cansado pelo tempo, manchado pela fumaça, desbotado pelo sol. A casa não tinha campainha. Tonico atravessou o pequeno portão da rua e bateu na porta amarela. João seguia atrás.
Depois de alguns segundos uma voz de menina soou lá dentro:
– Quem é?
Tonico sentiu medo, o que nele era raro. Respondeu vacilante:
– É Antônio.
A menina não abriu e não respondeu nada por quase um minuto. Quando respondeu, a voz estava mais fraca e parecia ter medo também.
– Que Antônio?
– É seu pai.
Passaram-se mais alguns instantes antes de ouvirem o barulho da chave. Waldislânia abriu a porta devagar e encostou-se no umbral, ainda com a porta entreaberta. Ficou olhando fixamente para Tonico. A expressão era cansada, e talvez um tanto incrédula. Pai? Que pai, se nem se lembrava do rosto dele? Mas tinha aquela foto na mesinha da sala, e era mesmo muito parecida com esse homem aí, bem diante dela.
Tonico se ajoelhou bem em frente à menina, ficando de sua altura. Ela era miúda e o tamanho do homem a intimidava.
– Vem, filha, deixa eu te dar um abraço, que a última vez que fiz isso você tinha a metade do tamanho que tem agora. Vem aqui, vem.
A menina continuava parada olhando o rosto do homem, agora na altura de seus olhos. Não sentia vontade de abraçar, mas também não queria mandá-lo embora. Queria que a mãe estivesse em casa.
João, que tinha recuado até à calçada, observava a menina. Era pequena e magrinha como as meninas de sua cidade. Mas era bonita, tinha o cabelo comprido e cacheado caindo pelos ombros, os olhos muito vivos e um jeito sereno. E João pensava no pai e se perguntava sobre por que não tinha ainda mandado notícias para casa. E se estranhava toda vez que pensava na família. Estava longe, muito longe de todos eles. Faria como Tonico, anos sem se comunicar com as pessoas que tem?
Enquanto pensava, Waldislânia continuava escorada no batente da porta, sem saber o que fazer. Foi então Tonico que se mexeu: levantou-se e andou até a menina, tocou seu rosto com a ponta dos dedos, abaixou-se de novo, trouxe o corpinho dela para junto do seu, forçou o abraço tão desejado, tão adiado. A menina deixou-se cair no corpo enorme do pai desconhecido, estava enfraquecida, e a mãe não chegaria tão cedo. Tonico então sentou-se no chão da varanda e pôs a menina no colo. Tinha os olhos mareados, mas as lágrimas não escorriam. Com a voz tremida, começou uma conversa.
– Sua mãe não está?
– Está no trabalho.
– Hoje é sábado, pensei que estava em casa.
– Ela trabalha todos os dias, até domingo.
– Ela não recebia sempre o dinheiro que eu mandava?
– Recebia. Mas era pouco.
Tonico sentiu uma pontada de tristeza na voz da filha e, sem pensar, olhou para João lá fora, ainda de pé observando os dois. Tinha trazido o garoto porque sabia que ia precisar de um jeito de fugir das coisas todas que ia sentir naquele encontro.
– Venha cá, João! – e, para a filha – esse aqui é um amigo, se chama João, mora comigo numa pensão lá no centro da cidade.
– Você mora aqui?
– Moro há uns vinte dias. Demorei para vir te ver, porque estava faltando coragem. Eu sei que não devia ter ficado tanto tempo longe. Mas às vezes as coisas não acontecem do jeito melhor.
Waldislânia ouvia sem entender, mas a voz do homem começava a soar familiar e ela se aconchegava no colo imenso em que cabia inteira.
João se aproximou. Sentou-se no chão, no alto da escadinha que levava à varanda e ficou em silêncio. A menina então começou um choro sentido que doía no coração de quem ouvia. João não se aguentou e seus olhos se molharam e teve vontade de ir-se embora dali. Levantou-se e voltou para a rua.
– Onde você vai, João? – Tonico perguntou sem saber mais o que fazer com a menina agora em prantos em seu colo.
– Vou só dar uma volta.
E João não olhou para trás e enxugou os olhos e andou sem pressa. Parou a uns dois quarteirões da casa, em um bar velho e sujo. Sentou-se numa mesa na calçada e pediu uma cachaça. Nunca tinha bebido antes, mas sabe lá o que se passava em seus desejos agora, inteiramente lançados ao vento das mudanças que o faziam se desconhecer. Faria como os outros homens: uma cachaça para pensar melhor.
Bebeu a pequenos goles, assustado com a queimação por dentro. O interior do corpo parece que tinha a realidade intensificada, o líquido descia fazendo perceber cada pedaço por onde passava, até atingir o estômago onde desaparecia. A cabeça inchava e o desassossego não passava. Imagens invadiam a mente, lembranças antigas, o sonho de ver São Paulo, São Paulo real, Clarinha, Méri, a menina de Tonico ali tão perto, a mãe de Méri, sua própria mãe e seu pai, e os irmãos todos, Lindalva, por que não tinha ainda se comunicado com eles? Era só seu segundo dia na terra firme da cidade gigante, mas parecia um século, décadas, a vida toda. João mais e mais se desconhecia, ele não tinha nada de seu nesse mundo. Nem um jeito de ser. Que, desde que se lembrava de si mesmo, a única coisa que o preenchia era o sonho de ir-se embora do sertão. E o engraçado é que nem era infeliz lá, ao contrário, tinha uma vida calma, tinha até o amor de Clarinha, sempre bom aluno na escola, querido pelos professores e ainda mais pela Professora Paulina, e até por Padre Antonino. Ajudava os pais na lida da roça, mas não tanto que o atrapalhasse a estudar. Era um tanto esquisito sim, e não tinha muitos amigos para farra e bagunça, mas ninguém troçava dele – tinha um jeito tão próprio que até gerava respeito. Mas tinha aquele danado daquele sonho: vontade de conhecer o mundo. E o mundo era São Paulo. E agora que estava lá, era como se fosse uma página de papel em branco, sem nada marcado da vida de antes. As coisas todas iam sumindo e até qualquer desejo sumia. João se sentia assim um tanto de nada. Não saberia dizer o que queria fazer. Já estava lá, no meio do sonho, e agora devia só viver, encher-se do novo que o assaltava de todos os lados. Conhecer.
Quase sem se dar conta, decidiu que não se comunicaria com ninguém, nem com Clarinha. Se o perguntassem por que, não saberia responder. Se o perguntassem se não poderia ser diferente, diria que não. Estava nu em um mundo novo e teria que se fazer assim: sozinho e a partir do nada.
Pagou o que bebeu e voltou devagar para a casa da menina. De longe viu que eles ainda estavam na varanda, mas ela agora estava sentada no chão, de frente para o pai, e conversavam. Quando chegou ao portão da frente, pôde escutar o que diziam. Tonico contava sua vida, suas viagens, talvez para se desculpar, talvez para que a menina tivesse agora uma história de seu pai para contar. João ficou parado no portão, sem vontade de subir, e nem sabia por que tinha vindo. Acabou sentando-se no meio-fio da calçada e ficou olhando o movimento da rua. Lembrou-se das horas sem fim que tinha passado sentado na porta de casa, à espera de alguma coisa – e nunca acontecia nada, só o barulho de dentro de casa e a mãe chamando para comer, e o pai zangado com um dos meninos e Lindalva cuidando de tudo para que ninguém se desentendesse, e a mãe às vezes cantando na cozinha. No de fora, nada. Nenhum movimento, nem mesmo o das folhas, porque o vento era raro. Se ao menos viesse a chuva. Algumas vezes ela veio e João agora se lembrou de uma vez em que uma tempestade o pegou sentado na janela do quarto e da alegria que sentiu. Pulou para o terreiro e deixou-se molhar pela água tão rara que vinha do céu. Era fria e boa e João se sentiu limpar de toda a poeira do sertão. E depois entrou, puxado pelo pai que tinha medo de chuva e de doença e foi tomar banho e colocar roupa seca. Quando terminou o banho, a chuva só pingava, e ele voltou para a janela e ficou vendo até cair o último pingo. Firmino e Carlinho o olhavam de banda, queriam saber se tinha sido bom aquele banho de chuva. João sorria para os irmãos e eles se arrependiam de ter obedecido o pai. Firmino era o mais corajoso e agora olhava o irmão mais novo com admiração. João voltou para a cozinha e a mãe lhe deu uma sopa quente para acabar de espantar o frio da chuva. O menino aceitou e comeu, mas seu coração já estava quente demais. Coração de João tinha fome de novidade.
Sorria com a lembrança, quando uma mulher muito bonita passou por ele e entrou pelo portão da casa. Era Laurinda, a mãe de Waldislânia. Subiu a escadinha apressada, na certa assustada com aquele homem sentado com a filha na varanda. João se levantou e foi acompanhar o encontro. A mulher parou no último degrau, empalidecida, parece que só aí o reconheceu. Tonico se levantou e estendeu a mão para ela. A mulher se recusou a cumprimentá-lo e mandou a filha entrar. A menina se recusou a entrar e ficou de pé entre os pais.
– Fala com ele, mãe. Ele só veio me ver e me explicar as coisas.
– Que coisas, menina? Que coisas esse aí pode explicar depois de te deixar sozinha aqui comigo por tantos anos?
– Ele estava longe, mãe.
– Quem tem filho não pode ir longe.
E o rosto dela se encolheu todo, tentando segurar o choro que não queria mostrar para o homem. Mas ele já tinha visto e, por um segundo, pensou que aquela mulher o queria de volta. E, do mesmo modo como um dia tinha arriscado tudo com o sonho de conhecer o mundo nas mãos, desta vez fez o caminho de volta, e mais uma vez lançou-se no risco, apenas com o desejo de consertar os estragos todos que tinha feito:
– Se ainda me quiser, eu volto para casa, arranjo um trabalho por aqui e nunca mais ponho os pés numa estrada sem vocês duas comigo.
Laurinda sentiu uma raiva de morte subir por dentro e a vontade de machucar sem dó aquele homem. Jogou-se em cima dele com as unhas grandes e a raiva toda que a tomava e o arranhou e chutou e tentou cuspir e morder. Mas era pequena demais e Tonico sem esforço a segurou pelos braços e a levou para dentro da casa. Sentou-a no sofá encardido e foi fazer um chá. Quando o viu de costas em frente ao fogão, o seu fogão, a mulher caiu no pranto que tentava segurar e a raiva se misturou com a tristeza da solidão, e logo veio a dor da saudade que sentiu, e então veio o desejo que teve que abafar e que ainda sentia. E mais raiva ainda a invadiu e agora era raiva dela mesma.
Waldislânia não entrou, ficou na varanda olhando para João ainda parado no último degrau da escadinha. João sorriu para ela e sentaram-se no chão. O ar ainda pesado não os deixava falar. O movimento na rua era pequeno, mas não parava. João gostou do lugar, muito diferente do centro onde estava a pensão, teria até gosto em arranjar um quarto numa casinha qualquer por ali. E riu de si mesmo quando se deu conta de que os prédios muito altos com os quais sonhara a vida toda estavam era lá, no centro. Mas logo o riso passou e veio foi uma dor muito funda – é que viu que até o sonho ia embora e aí então não restaria mesmo nada do que fora sua vida de antes. João se despia de tudo. E respirava fundo o ar da cidade maior do mundo... e de novo sorria, ah, não era a maior. Mas era como se fosse e João, sem saber por que, estava era quase feliz.
Não se dava conta de que tinha sido sempre um menino sem lugar. Coração de João não tinha pouso, nem dono. Mas nem ele mesmo era o dono.
– Moço, vem, o pai tá chamando para tomar café.
Entraram então os dois e encontraram o casal sentado na mesa posta com café, chá, pão e bolo. Tonico tinha arrumado tudo e Laurinda, com o rosto ainda vermelho e marcado, quase já sorria. Waldislânia e João se sentaram e se serviram, enquanto o pai e a mãe da menina se olhavam. Se olhavam se procurando, buscando um ao outro em sua forma antiga, de anos atrás. Mas ninguém falava. Até que a menina não se aguentou:
– Mãe, vai deixar o pai voltar?
Laurinda fez um sinal incerto com a cabeça e não disse nada. Os olhos turvaram-se de novo.
– Deixa, mãe – e a filha olhava para o pai com um amor tão novo que ele também sentiu o molhado nos olhos. Mas ele também não disse nada.
E então os dois homens saíram com a promessa de voltar em uma semana. A filha abraçou o pai. A mulher ficou de longe olhando. As duas fecharam a porta e sentaram juntas no sofá. A mãe caiu de novo no choro guardado, a menina deitou-se no colo.
João e Tonico pegaram o ônibus, depois o metrô e sentaram-se em um bar sujo e cheio, próximo à pensão. Tomaram cachaça e comeram linguiça. Pouco falaram.
Quando quase já iam embora, João perguntou, não sem medo:
– Se ela te aceita de volta, você vai mesmo conseguir sair da estrada, ficar parado aqui em São Paulo, a vida toda?
– Se é a vida toda não sei não, mas agora acho que é mesmo o que eu mais quero. Sabe o que descobri depois de tanto rodar por esse mundo, João?
– Fala.
– Que o mundo é sempre o mesmo. As pessoas são sempre as mesmas. Mais vale então escolher um canto e viver nele, com o coração todo lá.
E desta vez foi João quem sentiu o queimado da lágrima molhando os olhos ressequidos. Era o que a senhora do ônibus dizia. E João não entendia – porque o que estava vivendo naqueles primeiros momentos em São Paulo era o extremo oposto, era a realidade bruta do novo, do absurdo diferente. Não entendia, mas se inquietava.
Voltaram então para a pensão. João estava pesado como se há séculos não tomasse um banho. Já era noite e Méri não estava no balcão. João cumprimentou a mãe da moça e foi para o quarto. Deitou-se na cama e toda sua realidade caiu-lhe em cima do corpo. Mas ele não entendia, e nem sabia o que poderia ser entendido. Apenas sentia que o peso do que não entendia lhe machucava os ombros. A cabeça rodava, imagens antigas se misturavam às dos últimos dias. Acabou dormindo sem banho e sem tirar a roupa suja do dia.
Na manhã seguinte acordou com o sol já alto, Tonico ainda dormia e Bráulio já não estava no quarto. Sentia o corpo descansado pela primeira vez desde que entrara no ônibus em sua cidade. O peso agora era só o da sujeira, o que tratou logo de resolver. Tomou um banho longo e prazeroso. Era domingo e tinha o dia livre. Já tinha conhecido um bocado da cidade naqueles longos dois dias. Hoje se sentia livre. Nada a fazer, a não ser deixar o dia correr. No dia seguinte, começaria a procurar trabalho.
Desceu para tomar café com o rosto leve. O peso da noite anterior, se não era apenas o cansaço e a poeira, tinha desaparecido junto com eles. João desceu as escadas como quem chega. E era esperado.
Méri, ao pé da escada, tinha para ele um sorriso e um vestido muito alegres. Era domingo. E João também sorriu e sentou-se com ela para o café. Ela o serviu e trouxe lá de dentro uma fatia de bolo de fubá que não estava na mesa. Ele tentou não aceitar, mas não resistiu ao modo como ela oferecia. Sim, João estava leve e não resistiria mais.
– Méri, quer passear comigo hoje?
A moça sorriu, disse que tinha que trabalhar na pensão até às três da tarde, mas que depois a mãe vinha para o balcão e queria sim, passear com ele. Mas só se depois ele fosse conhecer seu quarto.
João sentiu de novo o calor estranho que subia pelo corpo todo e deixava o rosto em fogo.
– Não posso decidir depois?
A moça sorriu com malícia e balançou a cabeça em negativa. Passou o pé pela perna de João por baixo da mesa, enquanto dizia que ele tinha que decidir agora, senão ela não ia para o passeio. E então, como no outro dia, passou o dedo na própria boca e levou-o à boca de João que, desta vez, lambeu querendo sentir bem forte o gosto daquele batom.
Era bom e João, sem peso, concordou. Disse que iria andar à toa e que às três horas estaria lá para buscá-la.
Saiu da pensão com o corpo e a cabeça em fogo. De muito longe lhe veio a imagem de Clarinha, do sorriso de Clarinha. Mas a imagem não teve força para se tornar clara; o passado todo de João se desfazia em neblina, e ele olhava o mundo com olhos novos, como se nunca tivesse visto nada antes. Seu olhar era virgem como seu corpo. E João varria a poeira do passado.
Caminhou pelo bairro, leu as manchetes dos jornais nas bancas abertas, tomou uma cachaça enquanto almoçava, caminhou mais, voltou. Se arrumou e desceu às três horas em ponto. Saiu com Méri com uma alegria nova e um aperto no peito. Foram de ônibus para um parque muito grande, andaram de mãos dadas, sentaram-se na beira do lago, andaram mais, procuraram por uma sombra debaixo de uma árvore grande, sentaram-se outra vez. Méri se achegou para junto do corpo de João e o beijou na boca, sem nenhuma cerimônia. Ele se assustou, tremeu, e gostou. Apertou o corpo todo da moça de encontro a seu próprio corpo e deixou subir o calor que o vinha perturbando desde o primeiro dia. Se beijaram e se apertaram, até que ela quis falar:
– Você nunca esteve com mulher, não é, meu rei?
João fez que não com a cabeça e sentiu o rubor subir à face.
– Tenha medo não. Eu vou saber cuidar de você – e mais o beijou.
Já era noite quando chegaram à pensão. Subiram juntos as escadas e atravessaram a porta cor de rosa, que Méri cuidou de trancar. João ficou parado observando o quarto. Era maior do que o seu, tinha cama de casal, espelho, armário grande, e até um banheiro pequeno. As paredes eram pintadas de rosa, como a porta; doía nos olhos e João pensou que era impossível dormir naquele quarto. Mas era bonito, e João sentiu vontade de se sentar naquela cama tão grande. Por um instante pensou que muitos homens já tinham se sentado e se deitado lá, e teve medo outra vez. Não sabia o que fazer.
Méri então veio vindo do banheiro, só de sutiã e calcinha, e tudo era rosa também, e João se sentiu tontear, e uma leve vontade quase o fez sair correndo dali. Mas ficou.
E se deixou levar, e não soube mais de si, que ali quem dava as ordens era Méri.
E João, que era mesmo virgem, no corpo e nos olhos, viveu ali um nascimento. E, quando saiu, de banho tomado e sentindo fome, foi até o bar da esquina, bebeu duas cachaças e comeu um prato feito. Voltou para o seu quarto onde os outros já dormiam. Ajoelhou-se ao pé da cama e só conseguiu pensar em Padre Antonino: será que ele se enganara, será que estava entrando no caminho ruim e a alma pura, que talvez tivesse tido, tinha se dissolvido na poeira da estrada que era muita e muito fina? E pediu perdão a Clarinha, e pediu à mãe que o perdoasse e pediu ao pai que o ajudasse. E se deitou e o corpo estava alegre e a alma impura estava alegre e o sono veio fácil e João já não sabia de si.

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