quarta-feira, 16 de novembro de 2011

VI

Depois de quase duas semanas no hospital, com o corpo curado e o coração cansado, João foi levado ao novo presídio. A viagem de carro foi longa, explicaram que estavam indo para o sul, chegariam quase à divisa com o Paraná. Estaria ainda mais longe de casa, e o caminho de volta seria ainda maior. João seguia com o choro sempre pronto a irromper, o pensamento confuso, o cansaço. O que mais, Deus, o que mais teria que ver nesse mundo? E a lembrança da estrada de sua infância, o convite permanente da estrada que o chamava para o mundo, nem essa lembrança o alegrava mais. O mundo tinha se transformado em um emaranhado aprisionante, uma grande teia de aranha. E ele era o inseto apanhado pela teia, e era incapaz de ter a visão de conjunto dos fios que o prendiam. E João não entendia, e não entender o cansava de um cansaço infinito. As perguntas continuavam rodando: como expiar a culpa, como ficar bem com Deus, como reencontrar o caminho de volta, onde estão todas as pessoas que teve na vida, por que nenhuma notícia de ninguém, o que foi feito de Lindalva, o que fazer para retomar o rumo perdido. A culpa, que culpa? E João mais e mais se entranhava em si mesmo e um simples olhar pela janela do carro o ameaçava. O medo que tinha era de que cada simples gesto que fizesse gerasse um mal que geraria um castigo. Melhor então era não fazer nada, aquietar-se em si, ocupar apenas o espaço minimamente necessário, fazer apenas o que o mandassem fazer, falar apenas quando o mandassem falar. Sim, e ele quase sorriu, não fazer nada seria um jeito de não fazer o mal. Não fazer nada até reencontrar o caminho de casa, a estrada que o levaria de volta a sua janela.
E da janela do carro em que dessa vez viajava sentado no banco de trás, sem algemas, viu a entrada da penitenciária. Era um lugar muito grande e bonito e o cheiro da terra acariciou por dentro o corpo machucado do menino que ainda procurava um jeito de ser. De ser feliz? Talvez apenas um jeito de ficar bem e andar pelo mundo.
Do portão de entrada até o carro parar em frente ao prédio principal, ainda percorreram um longo trecho. Quando finalmente as portas se abriram e João saiu do carro, por si só e sem algemas, respirou com força e quase se abriu na lembrança do rosto de Clarinha. Andou devagar, seguindo os dois policiais que o conduziam. Passou pela sala da diretora, sim, uma mulher comandava o presídio e conversou com ele por mais de meia hora. Falaram da sentença, da quadrilha, da penitenciária de onde vinha, da violência sofrida lá, da vontade de trabalhar, da perspectiva de sair. Ela comentou sobre o empenho do Padre Cláudio em ajudá-lo, o que João sentiu como uma carícia. Explicou o funcionamento da casa, as regras, os horários, as possibilidades de trabalho. Perguntou se ele tinha alguma preferência de atividade. Ele respondeu que, como tinha trabalhado na horta no outro presídio, poderia continuar na mesma função, assim poderia aprender bem o serviço e continuar nele depois que saísse de lá. A diretora concordou, fazendo a ressalva de que, quando sentisse que já tinha aprendido o bastante, poderia mudar de função para aprender um novo ofício, pois quanto mais aprendesse, maiores seriam as chances de trabalho lá fora. João a olhou sorrindo e disse que a ele bastava agora aprender uma coisa só na vida, e com essa coisa seguiria para sempre. A mulher o olhou intrigada, começando a perceber a marca da diferença naquele garoto de olhos tão bonitos.
João caminhou para sua nova cela, de novo carregando duas mudas de roupa, toalha e roupa de cama. Para sua surpresa, viu que aquele pequeno prédio principal era apenas para os escritórios, o refeitório, o salão; as celas se espalhavam em construções baixas, de dois andares, contornando um grande pátio arborizado e cheio de bancos de cimento em torno das árvores. As celas térreas tinham a porta voltada para o pátio, as do segundo andar tinham as portas nos corredores que davam acesso a elas e que eram também pequenas varandas. As celas ficavam sempre abertas durante o dia. A segurança do presídio era toda concentrada em seus limites, muros altos, sistema de alarme, guaritas no portão e em pontos estratégicos dos muros. E quase nunca aconteciam tentativas de fuga ou rebeliões.
Quando João entrou na cela, viu duas camas baixas, de alvenaria, uma em cada canto, e dois pequenos armários na parede da frente. O carcereiro mostrou qual era sua cama e seu armário, apontou lá fora onde eram os banheiros e o deixou sozinho.
E sozinho em sua cela carcerária, com a porta aberta e a visão do céu muito azul lá fora, com o som dos pássaros que se aninhavam nas árvores do pátio, com o cheiro da terra úmida e o toque suave do vento, João sentiu-se livre. Olhou pela janela e o que viu o reconfortou. Não, não havia estrada a convidar, mas apenas um grande pátio arborizado rodeado por quartos como o seu. Apenas natureza e vento e quartos desabitados, que agora todos estavam em seus postos de trabalho. Mais olhava e mais se acalmava. E o que sentiu foi mais ou menos assim: deixo para trás o emaranhado, tomo um banho para me limpar de tudo o que passou e começo daqui uma estrada nova.
Mundo novo que habitaria com pequenos gestos e poucas palavras. Vida nova que construiria sem ousar ter desejos. O necessário, apenas o necessário. Era o que teria e o que faria a partir daquele dia.
Enquanto tomava banho, já sentindo o cair da tarde, ouviu um burburinho de vozes vindo lá de fora. Voltavam todos para as celas. Sentiu uma pontada de medo e, ao mesmo tempo, curiosidade. Não demorou a sair do banheiro, carregando nas mãos a toalha, o sabonete e a roupa suja da outra penitenciária que teria que entregar ao carcereiro. Alguns homens estavam no pátio, outros tantos dentro das celas e muitos se encaminhando aos banheiros. João caminhou sem pressa para sua cela, sabendo que certamente encontraria lá seu companheiro. A porta estava entreaberta, e ele a terminou de abrir devagar. Celso estava de pé, pegando uma roupa em seu armário. Era um rapaz pouca coisa mais velho do que João, alto, magro, barba por fazer, olhos de um tom castanho claro que pareciam permanentemente embaçados, cabelo crespo muito curto.
João o cumprimentou e o rapaz o olhou.
– Então é você que vem dividir esse quarto comigo. Vem de onde?
– Fui transferido de outra penitenciária do interior. Cheguei há pouco tempo, vocês estavam trabalhando. Você faz o que aqui?
– Trabalho na marcenaria. Eu já tinha sido marceneiro antes de ser preso. Meu tio tem uma marcenaria grande e me colocou lá para aprender o serviço com ele. Mas eu não consegui, fiquei só uns meses e voltei para a rua.
João o olhou intrigado. Rua? E não se furtou a perguntar:
– Você morava na rua?
– Não – e sorriu irônico para o garoto –, não é isso. Eu trabalhava nas ruas, entende?
João se sentiu inquieto, sabendo que não tinha entendido, mas tentando chegar onde o outro estava:
– Era camelô?
Já ficando impaciente, Celso respondeu sem rodeios:
– Não, eu era assaltante. Estou preso por três assaltos a mão armada e dois latrocínios. Estou condenado a oitenta e cinco anos de prisão, mas estou me esforçando para diminuir a pena. Bom comportamento, colaboração, trabalho.
João tinha se sentado na cama, sentindo de volta a vertigem que o tonteava às vezes. Estava diante de um criminoso comum, praticante dos atos corriqueiros que aterrorizam as grandes metrópoles do país. Não era um assassino passional, como Vavá, e nem tinha perdido o juízo, como Severino. Não era violento como João Ronaldo e Raimundo, parecia mesmo ser um homem normal, bom para se viver junto. Saiu do devaneio pela voz do outro:
– Como você se chama?
– João. Você é o Celso, não é? O carcereiro me disse seu nome quando me trouxe para cá.
– Sim, sou o Celso. E você, João, foi preso por quê?
E João repetiu o que sempre dizia:
– Ainda não sei. – Percebendo o desconforto do companheiro, continuou: – Fui preso por participação em uma quadrilha de roubo de cargas, mas eu não sabia de nada, não sou culpado disso. Mas quero descobrir do que é que sou culpado. Acho que fui culpado de ter deixado para trás minha cidade, minha família e minha namorada, mas só vou ter certeza mesmo quando voltar para lá e ver minha vida se encaixar de novo em um caminho bom. Estou aqui tentando me entender.
Parou de falar subitamente e olhou para Celso, procurando nele algum sinal de que o pudesse ter entendido. O rapaz o olhava com atenção, como se procurasse realmente entender, mas não disse mais nada. Saiu para o banho, deixando João sozinho na cela. Guardou suas coisas, estendeu a toalha molhada e deixou a roupa suja no chão, à espera do carcereiro. Deitou-se em sua nova cama pela primeira vez e fechou os olhos cansados. Agradeceu a Deus por estar ali e sentir-se seguro. A imagem de Padre Cláudio veio a sua mente misturada com a de Padre Antonino. Lembrou-se do dia em que tinha deixado quebrar a imagem da procissão, menino ainda. E os olhos turvaram-se, reconhecendo ali mais uma culpa.
Ficou deitado por algum tempo, deixando as imagens invadirem a cabeça pesada, deixando o corpo parar quase ao ponto de adormecer, e o coração descansar, e os olhos repousarem. João sofria de excessos. O mundo era excessivo em seu desenrolar ininterrupto de acontecimentos e cores, e João sentia-se como uma máquina incapaz de operar com tudo o que era colocado nela. Até mesmo seu corpo magro era excessivo para ele, por seu fluxo contínuo de desejos e sensações. Sonhava então com o entorpecimento dos sentidos para que cessasse o excesso, e se deixava levar pelo quase sono que o embalava.
Despertou quando Celso voltou para a cela, avisando que era hora do jantar. Explicou que comiam no refeitório, no interior da casa principal. Caminharam juntos e sentaram-se com outros presos. Celso conversava com todos eles. Apresentou João como seu novo companheiro de cela. João os cumprimentou sem jeito e jantou em silêncio. A comida era melhor do que a do outro presídio, principalmente por ser mais fresca e servida na hora, e por comerem sentados em uma mesa, decentemente. Fizeram a ele as mesmas perguntas de sempre, sobre de onde vinha e a razão da prisão; respondeu também como sempre fazia, e sentiu de novo os mesmos olhares intrigados. Sentiu-se bem apenas quando perguntaram sobre o trabalho, sobre em que equipe ingressaria. Falou sobre a horta do outro presídio e de seus planos de continuar com esse trabalho quando voltasse para casa. Depois de acabado o jantar, permaneceram algum tempo na mesa, conversando, tentando ter notícias do futebol e da política. João não se interessava. Levou seu prato à cozinha, onde apenas presos trabalhavam, e voltou sozinho para a cela. Sentou-se no batente da porta olhando o céu estrelado e de novo foi lançado nas lembranças da infância. Gostava de deitar na poeira do terreiro para ver as estrelas e a mãe brigava porque já tinha tomado banho e estava lá se sujando todo. Sorriu levemente se lembrando da voz da mãe quando estava brava. Era uma lembrança doce e cômica, ai, João sentia saudade das brigas que mostravam o cuidado. E sabia que tinha sido cuidado em cada dia de sua vida, até a entrada no ônibus. Quando, quando tinha sido aquela tarde? A vivência do tempo se embaralhava e ele não sabia mais o que esperar do futuro.
Quando os outros presos começaram a deixar o refeitório, soou a campainha que era o sinal de que em trinta minutos as celas seriam fechadas. Era então o tempo que tinham para usar o banheiro. Havia muitos banheiros, mas não o suficiente para que não se formassem filas. João apreendia o funcionamento da casa e se adaptava rapidamente. Meia hora depois, estava fechado em sua cela com Celso. Leu um pouco em sua Bíblia, conversou um tantinho, deitou-se. Celso ficou mais um tempo acordado lendo revistas de carros que sua mulher trazia sempre que vinha para a visita. Contou que quando entrou para o crime tinha um desejo só: ter um carro de rico, um carro grande, alto e potente. Tinha tido dois. Agora a mulher tinha tido que vendê-los dentro do morro mesmo, que precisava de dinheiro para a comida dos meninos. Tinha dois filhos gêmeos de cinco anos, dois meninos. A mulher esperava por ele lá fora, mesmo sabendo que a pena era longa. E João viu que os olhos dele se embaçaram mais ainda, certamente já sabendo que a vida dela ia correr e que um dia um outro qualquer ia ocupar seu lugar. Completou ainda que agora só pensava em um dia sair, arranjar um trabalho, quem sabe numa marcenaria, e comprar um carro simples, podia até ser usado, mas queria um carro. E sorriu um sorriso largo que João não tinha visto ainda, e que o fez sorrir também. Celso amava os carros, e foi com essa frase na cabeça que João dormiu em sua primeira noite na nova casa.
No dia seguinte, iniciou o trabalho na horta.
Dia a dia, seguiu cumprindo suas tarefas, aprendendo o ofício, observando os colegas, buscando a si mesmo. Dia a dia, sentia com mais força a certeza de querer voltar. Voltar a sua vida antiga. Se perguntava às vezes se, quando estivesse de volta, retornariam também os antigos sonhos e a estrada o convidaria outra vez. A vida poderia ser apenas isso, um círculo infindável de idas e vindas. Como a rotina que se repetia sem cansaço na penitenciária. Hora de acordar, o trabalho, o almoço, o pequeno descanso, a volta ao trabalho, o banho, o jantar, a campainha, o barulho das celas sendo fechadas por fora, o pequeno instante de angústia pelo aprisionamento, leitura, conversa, o sono. Aos sábados, trabalhavam apenas de manhã. Na cozinha, duas equipes se revezavam. No restante do sábado, ficavam livres pelo pátio e podiam dormir um pouco mais tarde. Algumas vezes aconteciam shows ou sessões de cinema à noite. Aos domingos podiam dormir até mais tarde e às onze horas chegava o padre para a missa. Desta vez, João não se aproximou muito do padre, que era um italiano já bem velho. Assistia a todas as missas com atenção e fez algumas confissões, mas não se abriu como tinha feito com o Padre Cláudio. Estava já muito firme em suas decisões e na compreensão a que tinha chegado das próprias culpas. Chegava mesmo a sentir, como verdade sem volta, que era culpado por não se saber culpado. E aceitava sua pena como o caminho mais curto para a expiação da própria culpa. E a lembrança de cada coisa que tinha feito na inocência livre da culpa o atingia em dor, e mais aceitava a punição, e mais desejava voltar para refazer todos os caminhos.
No início das tardes de domingo, aconteciam também visitas de pastores e representantes de outras religiões. E, às duas horas, começava o horário de visitas que se estendia até às oito da noite. João, que permanecia sozinho nesse mundo, observava os outros com seus parentes e amigos. Não se entristecia, era apenas uma dor ardida no meio do peito que não demorava a passar. Celso sempre recebia a mulher e os dois meninos que brincavam aproveitando o grande espaço do pátio. João se alegrava um tantinho vendo a vida das crianças. Se enternecia se lembrando dos irmãos correndo pela terra vermelha, mas as lembranças agora vinham sempre enevoadas, não se agrupavam mais em episódios limitados, eram apenas a confluência de um amontoado de imagens que se misturavam.
Mas aconteceu que, numa tarde dessas, sentado em um banco do pátio em meio ao murmurinho das visitas, se viu fisgado por uma lembrança muito antiga que veio nítida e em cores fortes. Era muito pequeno e acordou de madrugada depois de um sonho estranho. Escutou um barulho que vinha do quarto dos pais, vozes altas, um tom estranho. Ficou muito quieto na cama, mas conseguia escutar uma palavra ou outra do que diziam. Discutiam e parecia que a mãe chorava. Citavam o nome de uma mulher, a mãe estava com raiva, o pai estava calmo. Ouviu então uma risada do pai e o choro mais alto da mãe. E aquela incongruência ficou gravada na memória do menino que já sonhava em seguir pela estrada. E teve vontade de chegar lá e perguntar o que estava acontecendo. Mas teve medo e ficou bem quieto na cama, até o sono voltar. E de repente pensou que seu pai era culpado pelo choro da mãe. E que a mãe era a vítima dos erros do pai. A mãe que nunca tinha desejos, que apenas seguia vivendo e cumprindo seus deveres. E João fez para si a explicação final para o que vivia: pecado era desejar. E o desejo que sempre tinha tido de caminhar para o mundo deixando para trás sua casa tinha sido seu maior pecado, porque tinha sido sempre o maior desejo. Então a salvação era simples: seguir vivendo o caminho do dever, até chegar de novo à porta de sua casa, e então perguntar à mãe, que devia estar agora velha e cansada, o que ela queria que ele fizesse.
E João se alegrou e levantou o olhar com o coração leve. E viu uma moça muito bonita que não parava de olhar para ele. Sorriu para ela e saiu, foi caminhar um pouco no entorno do pátio.

E o tempo passou sem sobressaltos. Depois de seis meses, soube que tinha conquistado a redução da pena, teria apenas mais três meses pela frente. Recebeu a notícia com calma e tratou de esforçar-se ainda mais para ficar focado na direção já traçada. Dia a dia, pensava na saída, não com ansiedade, mas com calma e paciência para que tudo acontecesse do modo planejado. A diretora prometeu a ele indicar algumas fazendas da região, onde cultivavam grandes hortas, e fazer uma carta de recomendação para que conseguisse um trabalho assim que saísse de lá. E o plano de João era se empregar para juntar o dinheiro da passagem e um bocadinho a mais para recomeçar a vida em sua cidade.
Seu coração seguia tranquilo, sem medo do futuro, sem raiva do que tinha passado. Apenas a preocupação ainda o assustava, principalmente quando pensava em Lindalva e Danila. Um ano tinha se passado desde a prisão e nunca tinha tido uma única notícia de ninguém. Às vezes pensava que isso era estranho e se inquietava, mas depois se acalmava de novo e se firmava todo em seus propósitos. Jamais lhe ocorreu tentar buscar notícias, seja pelo telefone ou mesmo com o auxílio da direção da penitenciária. Quando lhe perguntavam por que nunca recebia visitas, dizia sempre que era porque sua família morava muito longe. E ele não era o único a não receber visitas.

Quando chegou o dia de sair, João estava pronto. Alerta. Preparado para o que vinha pela frente.
Despediu-se de todos lá de dentro, um por um. Um abraço mais apertado em Celso e na diretora. Um olhar rápido para o quarto, um olhar mais demorado para o pátio. Um sentimento estranho que misturava gratidão com o alívio por poder sair. Cruzou o portão da frente sozinho, com suas coisas todas em uma pequena mochila dada pela diretora. Os documentos, junto com três cartas de recomendação, arrumados em uma pasta. Vestia uma roupa nova, também presente da diretora. A roupa na mochila, lavada, era a roupa com que tinha sido preso, quinze meses antes. Quando viu a roupa, sentiu de novo o tremor que o tomou naquele momento, e pensou que agora era mais forte. Mas também menos livre. Já não era aquele menino pronto a seguir os chamados do tempo. Era um homem com um objetivo. Mas sorriu pensando que antes também era um garoto com um objetivo: seguir a estrada. E que agora o objetivo era, na verdade, ainda o mesmo: seguir a estrada pelo caminho de volta.
Começou a caminhar um pouco sem rumo, agora sentindo a liberdade de ter o tempo nas mãos. E o que era ou não liberdade parecia confuso e emaranhado para ele. Era cedo ainda e teria o dia inteiro para encontrar um lugar para dormir. Andou pelas ruas da cidade com o olhar curioso e quase reconheceu-se no menino recém chegado a São Paulo, comendo com os olhos tudo o que via.
Sentou-se numa praça rodeada de árvores e se demorou olhando a torre da igrejinha pequena, pouco maior do que a de sua cidade. Sentiu os olhos molhados e um cansaço que vinha não se sabe de onde. A vontade de chorar crescia à medida que o cansaço tomava conta do corpo todo. Mas era um cansaço que não doía, o que fazia era o devolver a seu corpo próprio, sentia sua vida de volta a suas mãos, e o significado disso era a simples possibilidade de poder decidir o que fazer nesse exato instante. Sentado no banco da praça, olha a igreja e sabe que pode ou não entrar lá, pode ou não se demorar, pode ou não simplesmente se deixar ficar onde está por todo o dia. Essa era a liberdade roubada pela prisão, liberdade singela que agora o alegrava. Mas quando estava preso, tinha aprendido a ser mais livre por dentro, e seu pensamento estancava, não podia ir muito além dessa frase, porque se se perguntasse o que era o por dentro, se complicaria todo. Com a cabeça rodando, acabou se levantando a andando até a igreja. Assustou-se com o que viu: a mesa do altar estava assentada sobre um caixão de vidro onde jazia uma imagem de Cristo coberta de sangue. A visão do sangue, mesmo que seco e feito de tinta, fez com que se sentisse mal. O corpo todo tonteou, mas conseguiu se segurar. Saiu da igreja rápido e voltou para o banco da praça, só que dessa vez se sentou de costas para a igreja. Ficou remoendo o mal estar que sentiu e a repulsão que o fez virar as costas para a igreja. Ai, não era esse o Cristo que amava, e que era a fonte do amor que sentia. E dali, então, saiu andando à procura de informações sobre como chegar numa das fazendas recomendadas pela diretora.
Depois de perguntar a um e a outro, se viu andando sozinho em uma estrada de terra estreita e rodeada de muito verde. Nas duas margens, uma vegetação densa e cheirosa o fazia se sentir bem. O corpo respirava fundo e livre. João era um corpo livre. João tinha a alma machucada. Mas seguia em frente sem nenhuma raiva, e a vida suave das plantas quase o fazia sorrir para si mesmo. Estava sem medo e o caminho feito sem medo sempre parecia mais belo.
Alcançou a porteira da fazenda quando o sol já ia alto no céu. Entrou andando devagar até passar por uma casa pequena onde algumas crianças brincavam com cachorros no terreiro. A mãe saiu lá de dentro enxugando as mãos e explicou que a casa principal ficava mais à frente. João agradeceu e seguiu. Um dos cães, um macho grande de pelo branco com manchas pretas, o acompanhou. João gostou da companhia do animal que apenas andava ao lado, sem latir e sem se aproximar demais. Quando finalmente avistou a casa, assombrou-se com o tamanho: era uma casa antiga, como aquelas das grandes fazendas de duzentos anos atrás, mas com pintura nova, tudo em perfeito estado. Deviam caber dez casas como a de seus pais dentro daquele casarão. Parou em frente à porta principal e chamou por alguém. Depois de alguns instantes, veio uma moça morena, muito bonita. João explicou que procurava trabalho e que gostaria de falar com S. Geraldo, o dono da fazenda.
– Geraldo é meu pai e não está não, moço. Ele viajou e só volta na semana que vem. Mas você pode falar comigo, que estou cuidando de tudo por aqui. Minha mãe está doente e viajou com ele.
Meio sem jeito de dizer para uma moça tão jovem e bonita que tinha estado preso, João contou sua história, inclusive da decisão de ir embora assim que juntasse o dinheiro de que precisava. Mostrou a carta da diretora e esperou olhando para as mãos fortes da moça que tinha agora o poder de dar um rumo seguro para sua vida. A moça, Catarina, tinha a mesma idade dele, vinte e um anos recém completados, e tinha o coração forte e o olhou nos olhos e viu a verdade do que tinha contado e da carta que ainda tinha nas mãos.
– Vou contratar você, João. Depois converso com meu pai. Fique tranquilo que ele não vai desfazer minha decisão. Vem comigo, vou te mostrar onde vai morar e onde ficam as hortas. Temos quatro hortas grandes e muita gente trabalhando nelas, mas há poucos dias um rapaz foi embora e estamos mesmo precisando de alguém.
João agradeceu sentindo-se seguro, quase como quando era menino e voltava para casa, cansado, e a mãe o pegava num abraço e ia preparar o jantar.
Chegaram a um alojamento com alguns quartos bem pequenos. Mas em cada um deles havia apenas uma cama. Sentiu como um sossego, como a calma que precisava para seguir adiante, poder dormir sozinho em um quarto. Sorriu e agradeceu mais uma vez. Catarina entregou a ele uma chave, mostrou o armário com toalha e roupa de cama e explicou que ele era o responsável pela limpeza do quarto e pela lavagem das próprias roupas. Mostrou lá fora uma lavanderia com máquina de lavar e ferro de passar. João deixou lá sua mochila, trancou a porta, e seguiu com Catarina para ver a terra.
Andaram muito por pastos imensos, até começarem a ver de longe as hortas. Eram muito maiores do que tinha imaginado e João se entusiasmou com o trabalho que teria pela frente. Catarina o apresentou a Rodrigo, o responsável geral pelas hortas, e seguiram, os três, por entre os canteiros. Rodrigo ia mostrando tudo, explicando o ciclo de cada uma das hortaliças, mostrando o que estava sendo feito no dia. João sentiu-se bem, certo de que tinha aprendido o que precisava para começar a trabalhar com segurança.
Catarina e João fizeram o caminho de volta em silêncio. Passando pelo alojamento, Catarina se despediu, dizendo a ele que pudesse andar à vontade pela fazenda, tomar banho, descansar, e que se apresentasse para Rodrigo no dia seguinte às sete horas, onde o tinham encontrado hoje.
A moça então voltou para a casa grande sentindo o corpo quente da caminhada. Mas talvez também com um calor a mais no coração. Não tinha deixado de perceber a força dos olhos de João.
E ele, mais uma vez começando um ciclo, arrumou sua cama nova, deitou-se de costas em frente à janela e se deixou ficar com o olhar perdido.
Na manhã seguinte, apresentou-se para o trabalho às sete horas em ponto. Passou o dia ao lado de Rodrigo, observando o trabalho dos outros e ajudando numa e noutra coisa. Ao final da tarde conversaram sobre qual seria sua função a partir do dia seguinte. Durante o almoço e o jantar, João conversou um pouco com os novos colegas. Mas não falou muito de si. Não escondeu que tinha estado preso, mas não contou em detalhes sua história. Seu olhar agora estava inteiro voltado ao que tinha que fazer: trabalhar e guardar todo o dinheiro que recebesse, já que não teria gastos com alimentação e moradia, e, assim que fosse possível, comprar a passagem para a capital, e de lá para o sertão. Precisava de um dinheiro a mais para os primeiros tempos e para dar uma ajuda aos pais. Calculava que depois de seis meses teria como partir. Não pensava em fazer amigos, e nem mesmo em ter uma mulher. Se antes, em São Paulo, tinha se voltado inteiro para o presente, deixando intocado o passado, agora se voltava todo ao futuro que se desenhava com as cores do passado, e a realidade presente pouco o afetava. Apenas o acalmava – era bom estar em lugar calmo e seguro, com cheiro de terra e barulho de bichos. Era bom ser tratado com respeito. Era bom ser visto por Catarina à distância.
O que ele notou desde o primeiro dia, passou a ser uma constante. A moça o olhava de longe, vinha vê-lo nas hortas, vinha ao refeitório, às vezes até almoçava por lá. Quando os pais voltaram de viagem, chamou-o na casa para se apresentar aos patrões. Apresentou-o como excelente trabalhador e seus olhos estavam belos e ainda o olhavam com força. O pai quis saber em detalhes todo o processo de sua prisão, ao que João respondeu sem rodeios. A filha já tinha contado a história e apresentado a carta de diretora. A mãe ficou receosa, mas, depois de uma longa conversa, aceitaram a presença do garoto estranho que os olhava dentro dos olhos com a força de quem nada deve ao mundo. Mas João devia, era assim que pensava de si agora. Devia ao mundo o retorno. Retorno à fatia de terra onde tinha crescido, aos braços que o tinham criado, aos braços da mulher a quem tinha deixado, e não deixou de repetir, mais de uma vez:
– São só seis meses, só o tempo de juntar um dinheiro, e preciso voltar para minha terra.
Ao que Catarina não pôde deixar de responder:
– Se não mudarem seus planos.
E João a olhou intrigado, mas não tocado. Não, moça, meus planos não vão mudar, porque não são planos, vou embora porque preciso ir, porque só assim vou pagar o que devo, e porque isso é uma decisão e não um plano. Uma decisão que é a única que eu podia ter, depois de ter entendido meu crime, meu crime verdadeiro. Não disse nada a ela, mas enquanto pensava a olhava e ela parecia ler por dentro dele, porque ainda disse:
– Quem é que sabe, João? Às vezes as coisas mais certas mudam.
O rapaz então se despediu e voltou para o trabalho, sentindo ainda nas costas o calor do olhar da moça que ficou sentada na varanda com a mãe que não tinha deixado de perceber a inquietude da filha:
– É só um garoto perdido por esse mundo, filha, não se deixa levar por pensamento bobo não.
Catarina a olhou nos olhos e sentiu entre elas a distância infinita da falta de entendimento. A mãe não sabia, não poderia saber a força do calor que a tinha invadido desde a chegada de João na fazenda.
Pediu ao pai para continuar responsável por cuidar das coisas por lá, no que ele consentiu orgulhoso, pois era sua única filha e um dia seria a dona de tudo. Catarina não passava um dia sem ver de perto tudo o que era feito na fazenda inteira, mas sempre se demorava mais nas hortas, e sempre trazia para casa as verduras para o almoço. Às vezes colhia, outras vezes pedia João para melhor escolher para ela. Quando recebia das mãos dele o que tinha pedido, não deixava de sentir o calor daquelas mãos que eram belas e suaves demais para o trabalho da terra. Mas que também, dia a dia, não perdiam a suavidade, ao contrário, a terra parece que era para as mãos de João um bálsamo. E mais ainda para a alma do moço, que pouco a pouco reencontrava a paz e a possibilidade de se ver como alguém com direitos a um lugar no mundo.
Alguns meses mais tarde, quando já tinha o dinheiro suficiente para a viagem, mas não ainda aquele tanto a mais de que precisava, quando descansava à noite debaixo de uma árvore grande, vendo a lua cheia surgir no céu, viu de longe a silhueta da moça vindo em sua direção com alguma coisa nas mãos. Catarina se aproximou com uma pequena bandeja com dois copinhos pequenos, uma garrafa de cachaça pela metade e um pedaço de carne seca. Sentou-se ao lado dele e ofereceu o que tinha. João aceitou e seu coração, que naquele momento era só expansão, sorriu agradecido. Beberam um tanto, nem muito nem pouco, contaram histórias das vidas de cada um, comeram juntos. E quando todos os trabalhadores já tinham se recolhido e as luzes da casa se apagaram, Catarina tomou o rosto do garoto nas mãos e o beijou nos lábios e seu corpo era só um desejo tão forte quanto temeroso, e o que temia era saber que poderia o estar amando e que ele por certo não seria seu. Porque João já nem pertencia a si mesmo, mas sim à decisão tomada e ao objetivo traçado. Mas naquela noite se deixou levar palas mãos da mulher que era bela e forte e que o acalentava com os olhos há muito tempo. Quando sentiu em sua boca o sabor da moça, seu corpo inteiro se expandiu como o coração que não temia e o sabor que o invadiu era doce e o corpo dela era tenro como as frutas mais frescas, acabadas de ser colhidas. E passaram a noite juntos em seu pequeno quarto que era só uma parte mínima daquelas terras todas que eram dela. E, para ela, aquele era o maior dos espaços, pois era onde podia ser, apenas ser, em seu desejo. E o desejo a empurrava à beira do precipício que a levava à vertigem. Mas da vertigem voltava à alegria insana de estar nos braços daquele homem raro. Sim, raro era o que era o menino estranho e perdido. E João era carinhoso e delicado e se entregaram com força, mas também com cuidado, e dormiram juntos e no dia seguinte, quando João acordou assustado por ter perdido a hora, ela o lembrou de que era a patroa. E passaram a manhã inteira juntos com a porta trancada. Saíram para o almoço e quando João, tremendo, perguntou sobre o que diriam aos patrões, ela o acalmou dizendo que tinham saído cedo para fazer compras na cidade e que certamente nem perceberam que não tinha passado a noite na casa. João sorriu com alívio e entendeu que ela sabia o que fazia. Sempre. Mas e ele? O que tinha feito, e como ordenaria as coisas daqui para a frente?
Com o correr dos dias, soube que não poderia estar perto de Catarina sem tê-la em seus braços, que o desejo que sentia por ela aumentava, e que o prazer e a alegria que sentia ao lado dela o tornavam um homem feliz, e que a calma que sentia ao dormir ao lado dela, depois de viverem o prazer do corpo, era incomparável a tudo que já tinha experimentado nessa vida.
Mas os meses continuavam a passar e os seis meses se completaram e, como tinha previsto, o dinheiro já era o suficiente para a partida e os primeiros tempos em sua terra. E João, que não podia deixar de cumprir seu destino, teve que encenar a despedida, sem sequer se perguntar se não poderia ser diferente.
E Catarina tentou fazê-lo ver:
– João, meu amor querido, não vê que planos podem mudar? Que podemos tentar fazer um contato com sua família, explicar tudo o que aconteceu com você desde que saiu de lá, que podemos até fazer juntos uma viagem até lá, que posso te ajudar e até posso dar um bom dinheiro para seus pais encaminharem melhor a vida por lá... Que você pode viver aqui comigo, que pode se tornar o dono de todas essas terras, e quem sabe até trazer sua família para cá um dia? João, você não pode deixar para trás o que temos, o que temos vivido juntos um com o outro, João, eu sei que você é feliz comigo, João.
E o rapaz tocava o rosto da moça com os dedos trêmulos e sabia que talvez pudesse ser feliz com ela, mas também sabia que isso seria permanecer no pecado e que, assim, novos e novos castigos se seguiriam e que não havia saída a não ser a expiação da primeira falta, e isso só poderia ser feito pelo retorno definitivo a sua terra, por seus próprios meios e pelo retorno a Clarinha a quem tinha deixado. E que, até por bem querer a Catarina, era isso o que tinha que ser feito, pois, se ficasse, contrariando o que tinha que ser feito, qualquer pena que viesse a sofrer do destino recairia também sobre ela, e isso ele não suportaria. Deixava-a agora e seguia seu destino, em busca do perdão.
E quando Catarina tentou fazê-lo ver que nada disso tinha sentido, João não deu ouvidos. Ela então, ainda que sem entender, simplesmente aceitou e o deixou livre, pois sabia que o amor morreria se não fosse livre. Viu-o partir com as lágrimas todas do mundo molhando-a por dentro e por fora, mas com a alegria de deixar livre o amor que tinha.
Se cada um tem por dever entender o mundo, João tinha cumprido sua parte, e se não agisse de acordo com a compreensão que tinha construído à custa de dor e entrega, não conseguiria manter por muito tempo a paz que parecia ter alcançado agora.
E João então guardou na mochila tudo que era seu e caminhou com firmeza para a cidade, sem poder aceitar que Catarina o levasse de carro. Do caminho à pé, ao ônibus para a capital. Algumas horas na rodoviária onde, alguns anos antes, tinha desembarcado com a vida nas mãos. E a entrada no ônibus que o deixaria na praça de sua cidade.

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