quarta-feira, 16 de novembro de 2011

VIII

E durante todo o percurso de volta, João tinha os olhos tão abertos quanto na viagem de ida. Da primeira vez, o que buscava era o desconhecido; agora, buscava o velho. Se alegrava a cada paisagem reconhecida, a cada planta reencontrada. E quando a paisagem começou a dar sinais do sertão, quando a vegetação começou a rarear e a terra vermelha se mostrava mais nua, os olhos de João mais brilharam, molhados pelo choro que vinha da emoção de estar chegando. Era como voltar para dentro de si mesmo. O caminho de volta rumava ao centro do seu peito.
E quando o ônibus finalmente parou na pracinha de sua cidade, o céu tinha quase a mesma cor do dia da partida. Azul manchado de outros tons. Agora, o amanhecer, no outro dia, o entardecer. A cor do céu quando muda de cor, quase a mesma, do dia para a noite, ou da noite para o dia. João voltava fechando um grande círculo, como se apenas tivesse passado uma noite fora. Do fim da luz ao princípio de outra luz, João voltava depois da noite.
Desceu do ônibus com a mochila nas costas. Respirou com força e olhou as casas ainda adormecidas. Um menino veio se oferecer para carregar a bagagem, João explicou que não tinha bagagem e o menino sorriu com malícia, olhando para outros jovens que desciam do ônibus com várias caixas de presentes trazidas lá do sul. E só então João se deu conta de que voltava de mãos vazias. O que trazia era só ele mesmo. “Me trago de volta”, pensou. Olhou o menino com carinho e saiu andando.
Mas não foi para casa. Seu impulso o levava à porta da casa de Clarinha. Casa onde ela antes morava com os pais e os irmãos, mas que agora era dela e do marido, o resto da família tinha se mudado para uma casa um pouco maior. A vida tinha corrido.
Quando viu de longe a casa ainda com as janelas fechadas, um calor subiu por todo seu corpo. Era chegada a hora. Não sentia medo, apenas a certeza de ter feito o que era certo. João era todo inteiro em sua decisão. A lembrança do cheiro de Catarina passou por sua mente com a rapidez de uma estrela cadente, mas João não fez nenhum pedido. Não tinha mais desejos, ele que agora estava só. Sozinho com sua decisão.
Subiu sem pressa os três degraus que levavam à varandinha em frente à porta e bateu com firmeza. Esperou alguns minutos antes de ouvir o barulho de passos no assoalho antigo da casa onde Clarinha cuidava de sua família.
Quando a porta se abriu e a moça apareceu com a barriga crescida em frente aos olhos do garoto que agora carregava na alma o peso de ter sido culpado, João quase entendeu que a culpa era de todos e era irremediável, mas em silêncio apenas a olhou nos olhos, e quando ia sorrir e estender para ela os braços cansados, o homem veio vindo lá de dentro. E o que movia suas pernas era mais o ciúme do que o dever de proteger a esposa do bandido perigoso. E o que o fez levantar o braço com a arma empunhada foi mais o desejo de proteger a si mesmo do amor que a esposa tinha pelos olhos brilhantes que agora a olhavam do que o dever de proteger toda a cidade do bandido perigoso. Mas quando a bala certeira atingiu o centro do peito de João, o que sentiu foi a certeza do dever cumprido, e o ciúme e o medo que eram seus foram soterrados pela calma da certeza de ter agido para proteger a esposa e a cidade.
Clarinha segurou nos braços a cabeça amada de João e, mesmo através da morte, pôde sentir o calor dos olhos dele. E aos poucos foram chegando as pessoas que o tinham esperado, e os outros tantos que agora o temiam.
E o enterraram no silêncio. E nenhuma palavra se fez ouvir até que Padre Antonino rezasse sobre a sepultura.
Do outro lado da estrada, sobreviveu uma única fotografia de João: agachado no chão, abraçava o cachorro grande de Catarina e sorria olhando para a moça com quem poderia ter vivido. E Catarina guardou, sozinha, o brilho daqueles olhos.

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