quarta-feira, 16 de novembro de 2011

IV

No dia seguinte, se encontraram logo cedo no trabalho. Se olharam pouco, trocaram poucas palavras sobre a saúde de Lindalva, combinaram um almoço juntos. Os olhos de Danila brilhavam levemente, e ela se envergonhava do que sentia. Para fugir da angústia que a situação causava, enchia a cabeça de pensamentos sobre o futuro, imaginava que iria um dia se casar com ele, que teriam um filho, que seriam felizes. O coração ficava quieto, mas logo abria os olhos outra vez e o que via era o moço bonito e distante a seu lado. João era belo porque tinha aqueles olhos que lançavam no mundo uma coisa que ela não entendia, mas que parecia muito com o que andava procurando pela vida. Os olhos de João tinham um jeito espantado de olhar, um espanto de quem vê o mundo pela primeira vez, e vinha junto uma alegria escondida no canto do olhar. E os lábios dele eram carinhosos como devem ser os lábios que querem amar. Mas João, ele mesmo, era mais do que os olhos e os lábios. E ele não se entregava, e ele estava longe e tinha a cabeça cheia de sonhos, e ele queria viver até o fim as coisas todas que lhe enchiam a mente. João era livre como um pássaro selvagem. E tinha medo do aprisionamento do afeto. E Danila tremeu de novo ao lembrar-se do que ele tinha dito a Lindalva, que não a queria por perto para não se prender.
João, enquanto Danila perdia-se pensando nele, pensava em umas tantas coisas que invadiam sua mente, uma atropelando a outra. Era Lindalva e Danila, eram os pais tão longe e cheios de preocupação, era Tonico e sua família, era Bráulio com toda sua estranheza, era essa loja, esse trabalho que até hoje João não entendia bem. Mais de um ano tentando escutar aqui e ali uma conversa que explicasse melhor as coisas ali dentro, a lembrança de Tonico dizendo para tomar cuidado. E João sentiu então pela primeira vez vontade de procurar Tonico e pedir ajuda para arranjar outro trabalho, mas talvez isso fosse só um jeito de fugir de Danila.
A cabeça de João fervilhava na loja vazia sob o olhar da moça que o queria para si, quando a sala em que estavam foi invadida por um grupo de homens armados. Seis ou sete homens de roupa escura, capacete, grandes botas negras e armas nas mãos. Gritavam e as vozes eram grossas e abafadas. João, no fundo da loja olhava atônito sem ideia do que seria aquilo tudo; Danila tremia perto de um dos homens. Depois de alguns segundos de tensão extrema, conseguiram entender o que diziam: polícia. Eram policiais em uma grande operação. E estavam todos presos. João foi colocado em um camburão junto com Bráulio e mais dois colegas que trabalhavam junto dos chefes. Danila foi para outro carro com as três secretárias. Bráulio e os outros dois estavam nervosos, mas pareciam saber o que se passava. Apenas João olhava para tudo como criança diante de uma catástrofe desconhecida. Não entendia e não conseguia articular uma única palavra. Tinha os olhos abertos em brasa, o coração batendo com força. Olhava fixamente para Bráulio, na tentativa de retirar dele alguma compreensão. O outro evitava o olhar do garoto. Iam todos em silêncio sob a vigilância pesada de um dos policiais.
O percurso durou mais de uma hora. Uma hora que passou lenta, e João respirava, com dor, o ar pesado e carregado de ódio. Ele mesmo não odiava e quase nem chegava a ter medo. Apenas a angústia corrosiva por não entender o que se passava. E a imagem de Tonico indo e vindo da mente, seus conselhos, sua desconfiança em relação a Bráulio e ao trabalho. E a imagem de Lindalva, o corpo adoecido da irmã, a vontade de sair correndo e ir ficar com ela, e se abrigar no seu abraço. E veio forte a lembrança do dia em que tentou fugir de casa, da perdição que sentiu quando caiu desmaiado no chão, sedento e faminto, sem forças para nem mais um passo, o alívio amargurado pelo fracasso quando o homem o pegou no colo e o levou de volta para casa. Quem poderia salvá-lo agora? Salvar de quê, meu Deus, era o que se perguntava sem trégua. Que perdição era essa agora? Qual era o risco, qual era o perigo, qual tinha sido o erro?
Quando chegaram à delegacia, aliviou-se por pelo menos respirar por alguns instantes o ar da rua, antes de entrarem no prédio sujo e quente, lotado de gente. Foram colocados sentados numas cadeiras duras num dos cantos da grande sala de espera. E ali esperaram muito tempo, até que começaram a chamar, um por um, para um primeiro depoimento com o delegado. Enquanto esperavam, João tentou falar com Bráulio, perguntou sôfrego sobre o que era aquilo tudo, o que tinham feito de errado. Bráulio não respondeu, apenas sorriu com uma ironia cortante, e disse a João que deixasse de fingir de ingênuo. Fingir? Ingênuo? A cabeça de João rodava como redemoinho descontrolado. E não era mais só a situação que o perturbava, era ele mesmo, a vida toda dele. Ingênuo? Era isso então, só um bobo de um menino ingênuo querendo viver em São Paulo, a maior cidade... E se cansava de si mesmo por não se furtar a repetir sempre a mesma ladainha mentirosa sobre São Paulo, a maior cidade do mundo. E se cansava de si mesmo por tanto querer entender e não saber mesmo nada de nada sobre o mundo. Mas sabia que não fingia, e o outro pensava que fingia. Ou tinha dito aquilo apenas para perturbá-lo ainda mais? E veio subindo um choro, um choro que seria como um lamento por cada passo dado até ali, e o consolo veio na forma da imagem do sorriso de Clarinha, sorriso que era só brancura, só sonho de alegria e beleza, beleza que era simples, singela como deveria ser todo sorriso. E pensou então que Bráulio não tinha sorriso, que os homens todos ali naquela sala fedida e quente não tinham sorriso, que aquela sala era toda um porão para ratos, que... e veio então uma raiva, uma raiva que subia aos poucos ao centro dos olhos que eram puros e que nunca se manchariam, mas que agora podiam conhecer a raiva. E o mundo já não era tão bonito.
O mundo já não era tão bonito. E foi com essa frase rodando com força pela cabeça, que João acabou deixando sair o pranto. E os homens todos o olhavam com desprezo e quem sabe alguma inveja. E foi com o rosto lavado de lágrima e sal que João caminhou para a sala do delegado. Sentou na cadeira em frente ao homem pequeno e barbado que o olhava curioso, sem deixar de perceber que o garoto era diferente da maioria dos que passavam por aquela cadeira.
– Chora por quê, garoto? – E para o guarda de pé no canto da sala: solte as algemas, deixe pelo menos ele enxugar o rosto.
João com as mãos livres limpou as lágrimas com a camisa e pôde olhar de frente para o delegado. Os olhos brilhavam ainda mais pelo molhado do choro. E o delegado repetiu:
– Chora por quê?
João não sabia como responder, mas arriscou:
– Não sei por que estou aqui.
O guarde de pé sorriu irônico, a mesma ironia sardônica de Bráulio, ironia maldosa que insinuava mais uma vez o fingimento de João. O delegado, porém, não riu, e pareceu acreditar no garoto.
– Vamos seguir passo a passo e você vai entender, e pode me ajudar. Diga seu nome, idade, origem.
– João da Silva Nascimento, 19 anos, vim de Mombaça, interior do Ceará.
– Há quanto tempo está naquele emprego?
– Pouco mais de um ano.
– O que fazia lá?
– Trabalhava na loja como vendedor. Atendia o público.
– Loja? – E desta vez o delegado sorriu com leve ironia, mas conteve-se e prosseguiu. – Era uma loja como as outras?
– Sim, a diferença era só a porta fechada, as pessoas tinham que tocar o interfone para entrar. Mas era só por segurança.
– Mas havia uma entrada aberta ao público na rua de trás, não havia?
– Sim, era a entrada do escritório, a loja ficava nos fundos da casa do escritório com uma porta de saída para a outra rua, a porta que ficava fechada e por onde as pessoas entravam para fazer compras.
– João, e o escritório, era escritório de quê?
– Isso eu não sei dizer. Tentei saber muitas vezes, mas me mandavam não fazer perguntas.
– E você acha que as outras pessoas que trabalhavam lá eram como você, desconheciam o que se passava no escritório?
– Não sei dizer de todos, mas sei que Danila só sabia o que eu sabia.
– Certo. Mas me diga mais da loja. O que vocês vendiam lá?
– A mercadoria variava muito, cada vez que chegava vinha com coisas diferentes. Roupa, eletrodomésticos, ferramentas, brinquedos, já nem sei, variava muito.
– E o preço, era bom?
– Sim, nós vendemos muito mais barato do que as outras lojas, por isso nunca sobra nada, as pessoas procuram muito a loja.
– E você nunca achou estranho tudo isso? Mercadorias variadas, preço baixo, porta fechada. Qual função que consta na sua carteira de trabalho?
– Auxiliar de escritório. Um amigo sempre me dizia que era tudo estranho. Mas eu não achava não, tinha acabado de chegar do sertão, tudo era estranho e novo para mim. E eu gostava de trabalhar lá, era tranquilo, ganhava meu dinheiro e ia vivendo.
– Você se encontrava muito com seus chefes?
– Quase nunca. Conversar mesmo, só quando fui fazer entrevista para começar. Dúvidas com o serviço, eu resolvia sempre com Danila, que era antiga lá. E via sempre o Bráulio, que foi quem me arrumou o serviço, e mora comigo na pensão.
– Bráulio. O que que o Bráulio fazia lá? Trabalhava na loja também?
– Não. Na loja era só eu e Danila. O Bráulio eu nem sei, ficava sempre andando pelo escritório, tinha reuniões com os chefes, falava muito com as secretárias e sempre estava presente quando chegava mercadoria nova.
– Da onde vinha a mercadoria, João?
– Não sei. Eles diziam que vinha de longe. Que cada vez buscavam um caminhão em um lugar diferente.
Nesse momento o delegado olhou para o garoto sentado sem medo na sua frente, e tinha certeza de que ele dizia a verdade. Por um instante pensou que, se tivesse dinheiro, o pai ia logo trazer um advogado bom e tirá-lo de lá. Mas não tinha, e estava preso por participar de uma grande quadrilha. Continuou olhando para João por alguns instantes e imediatamente se recolocou em sua função.
– Então, garoto, você não sabe onde eles buscavam os caminhões. Não sabe mesmo?
João apenas fez que não com a cabeça e sentiu um aperto por dentro, como uma compreensão que quase chega. Sentiu os olhos molhados de novo e desta vez foi ele quem fez a pergunta:
– Eram roubados, doutor?
O delegado também apenas assentiu em gesto constrito e explicou:
– Você faz parte de uma grande quadrilha de roubo de cargas, João. Uma quadrilha poderosa que vem atuando há muitos anos, com uma organização tão grande que até conseguiu montar uma empresa de fachada, um escritório de fazer nada, mas que conseguiu ter inscrição legal para ter endereço e contratar funcionários.
João abaixou a cabeça e sentiu o peso todo da maior cidade do mundo cair sobre sua nuca. Os olhos molhados não enxergavam nada, a cabeça vazia não pensava, as mãos inertes não seriam capazes de um abraço. João não sentia a si mesmo, estava como que lançado no vácuo, sem qualquer possibilidade de orientação. Nenhuma imagem lhe vinha, nenhum consolo. Até que pôde levantar os olhos outra vez e ver o delegado que ainda o olhava.
– Eu não sabia, doutor. Eu não sabia – e a voz saiu fraca, e os lábios tremiam, e o suor molhava levemente a testa – e agora, doutor, o que vai acontecer comigo e com os outros?
– Cada um vai ter seu processo e seu julgamento, vamos tentar entender a participação de cada um na quadrilha. Você conhece algum advogado, João?
O garoto fez que não com a cabeça e o desânimo tomou cada pedaço de seu corpo. Sentiu que ia ficar por ali por muito tempo. O delegado continuou:
– Você vai ter um advogado público, que vai te ajudar. Se o juiz entender que você não sabia de nada, como você afirmou aqui, não vai ficar muito tempo preso e vai poder começar de novo sua vida.
– E Danila? Ela também não sabia.
– Ela também vai ter o julgamento dela, João. Cada um vai ser punido pela culpa que tem.
João olhou em torno e viu as paredes velhas, os guardas com cara de brutos, pessoas esperando para falar com o delegado, e tudo era feio e cheirava mal, e sabia que as coisas ali não funcionavam como o delegado falava, tudo parecia andar fora do trilho, e o delegado falava como se as coisas andassem bem firmes em seus caminhos justos. Não, João percebeu ali que a justiça era arisca, e que não se deixaria alcançar facilmente. João seria punido e tentava descobrir por quê. Não era culpado no caso em questão, jamais suspeitou participar de uma quadrilha, mas certamente era culpado por alguma outra coisa e a punição não era da lei, era de Deus. E João se lembrava de Padre Antonino e sentia uma pontada no peito, o padre tinha errado, seu coração não era puro, era inteiro pecador e tinha agora que conhecer, um a um, cada um de seus pecados.
Com essas ideias todas na cabeça, João foi levado para a cela onde já estavam outros dez homens. Nenhum companheiro do trabalho estava nela. Companheiros de quadrilha – João se pensava como bandido perigoso e o choro voltava, e de repente pensava que muitos dos que trabalhavam com ele eram mesmo bandidos perigosos e tentou imaginar quantos deles participavam diretamente dos assaltos, com armas e coragem. E se perguntou sobre se já teriam matado alguém nos assaltos. E teve certeza de que Bráulio era um dos assaltantes, pois nunca tinha uma função clara dentro do escritório e sempre ficava mais calado ainda do que já era alguns dias antes da chegada de mercadoria nova. Só não entendia porque era que ele continuava morando naquele quarto de pensão junto com mais dois desconhecidos, pois certamente teria muito dinheiro para viver em qualquer outro lugar. Talvez fosse seu jeito de viver escondido. E então se lembrou de Tonico e teve vontade de falar com ele. Mas sabia que não faria isso. Não se comunicaria com ninguém, absolutamente ninguém, enquanto estivesse preso. Ia voltar-se completamente para si mesmo, ia procurar em si as causas do castigo.
Sentou-se encostado numa parede, as pernas dobradas de encontro ao corpo, os braços em torno das pernas, e olhava para cada um daqueles homens. Os outros o olhavam também, puxavam conversa, perguntavam por que estava ali, mas ele não respondia – responder o quê, se não sabia ainda? Sentia por dentro do corpo a força da pergunta e a repetia como um mantra: por que, por que estou aqui, o que vim pagar, por que, por que estou... E não se interessava em saber dos crimes dos outros – João quase não enxergava mais em torno de si. O mundo se desvanecia, enevoado por uma neblina densa e branca, e João voltava-se para dentro e os limites do mundo passavam a ser os limites de seu corpo. Mas ele não estava enlouquecendo, não, era muito capaz ainda de atender ao que lhe pedissem, respeitaria a lei e faria tudo o que tivesse que fazer durante todo o processo. Apenas não aguentou ficar parado com a dor sufocada da situação inexplicável em que se encontrava. Apenas não aguentou permanecer no ponto onde tudo estava misturado e a vida se suspendia em uma pergunta irrespondível. Não aguentou e explicou-se: a vida me castiga porque pequei, e agora preciso descobrir quais foram os meus pecados. E quando este pensamento se formou com mais clareza, João se aquietou e o peito descomprimiu-se e pôde respirar quase sem dor. Contorceu-se apenas quando se perguntou sobre quais seriam os pecados de Danila? E, pensando no beijo que tinha trocado com ela, lembrou-se de Méri e do sorriso de Clarinha, tão longe no correr do tempo. E pensou na falta de notícias que tinha imposto a todos eles que gostavam dele, e mais sofreu ao deixar vir a imagem de Lindalva na cama de Danila, quase sem forças para andar. Que seria dela agora?
Quando saía já desse fluxo de lembranças e imagens das pessoas todas que eram sua vida, chegou um guarda trazendo café e um pão com manteiga para cada um dos presos. Alguns se adiantavam famintos, outros desdenhavam o arremedo de lanche, café fraco, pão murcho, mas comiam também. João foi o último a pegar sua parte. Voltou para o mesmo lugar, sentou-se e comeu. Comeu como tinha que comer. Não achou ruim, nem bom, apenas comeu. Não se lembrou dos biscoitos de sua mãe e nem dos bolos de Méri. Apenas comeu. Apenas sabia: era preciso fazer o que tinha que ser feito. E voltou a olhar para cada um dos presos, e um deles, sentado na sua frente, sentiu um arrepio no corpo ao ser olhado, o garoto tinha um olhar que feria, tamanho era o brilho dos olhos. O homem, já quase velho, abaixou os olhos e teve raiva. Mas pensou: que nada, é só um criminoso como eu.
À noite dormiram todos no chão, em pequenos colchonetes, um ao lado do outro; o cheiro era forte, fazia calor, o chão era duro, mas João dormiu, e dormiu bem. Sonhou com um correr de imagens de rostos de pessoas que conhecia e de outras tantas que nunca tinha visto. Acordou à primeira luz do dia e apenas um preso estava acordado, sentado no colchão, encostado à parede. Era o mesmo que tinha ontem percebido seus olhos. Olharam-se outra vez, e desta vez João sorriu e disse bom dia ao homem corroído pelo tempo.
– Bom dia? Aqui nenhum dia é bom. – E continuou olhando para a cara do garoto que ainda sorria com os olhos e o olhava sem saber o que dizer. E pensou que tinha entendido o porquê daquele brilho: o garoto era bobo. E então sorriu de volta, vingado, o garoto era bobo, só isso, bobo. E mais sorriu, e se ainda conseguisse, teria rido à solta. Garoto bobo. E resolveu manter a conversa, se divertindo com o menino – o que você faz aqui, garoto, com essa cara tão bonita?
– Ainda não sei.
E João continuava olhando para o homem quase velho que agora o olhava intrigado, se perguntando se o menino era mesmo retardado ou só fingia. João continuou:
– E você, sabe por que está aqui?
– Matei minha mulher com duas facadas. Peguei a desgraçada com um vagabundo quando cheguei de viagem. Sou caminhoneiro, dias e dias na estrada para comprar o pão pra família e quando chego, uma desgraça daquela. Eu tinha sofrido um assalto, fui pra casa mais cedo porque sofri um assalto, uma quadrilha roubou a carga do caminhão que eu dirigia, fui pra casa mais cedo, cheio de raiva, e encontro aquela desgraça. Não aguentei não. Antigamente fui bandido do tráfico, larguei por causa dela, da mulher, casei com ela, fiz família, e aí chego em casa e vejo aquilo. Peguei foi a faca da cozinha, enfiei na barriga com a força toda da minha raiva. Quando o corpo dela caiu, me arrependi, me ajoelhei ao lado dela com os meninos, não fugi. Aí pensei: chegou a hora de pagar por tudo. A polícia demorou, mas veio e me trouxe. Os meninos ficaram lá, já são homens, vão se virar. Se ficarem bandidos como eu, não me queixo. Essa vida é feia, garoto, é muito feia. Alguém tem que fazer o que tem que ser feito, alguém tem que derramar o sangue, é isso, é só isso mesmo. E não se espante assim não, você está aqui também, também é um criminoso.
João assentiu com a cabeça e sabia que era isso mesmo, era um criminoso, como eles todos. E de novo veio subindo o choro, mas segurou com força, era preciso ter a coragem que só um criminoso tinha. E o choro refluiu e João entendeu.
Quando passou um guarda pela cela, João pediu para ir ao banheiro. Foi com o guarda ao lado, olhando-o o tempo todo, entrou no banheiro e o guarda ficou na porta, esperando. O banheiro era pequeno e sujo. Tinham acabado de limpar, mas ainda parecia sujo, era sujeira que não saía mais, mancha, e João se sentiu igual àquelas paredes, sentiu nele mesmo a mancha que não ia mais sair. Procurou por um espelho, mas não tinha, nem um pedacinho quebrado. Queria se ver porque se sentia perder. Sentia que era preciso ver o seu rosto de novo, ver se ainda seria capaz de se reconhecer. Lavou o rosto com raiva, uma dor o empurrava por dentro, precisava de um espelho. Saiu apressado, enxugando as mãos na roupa. O guarda o esperava na porta e João aliviou-se ao vê-lo.
– Não tem espelho no banheiro. Eu preciso de um espelho.
O guarda riu e deu de ombros. Mas João não sossegou:
– Eu preciso de um espelho – e agora seus olhos estampavam o desespero que vinha tentando soterrar desde o dia anterior. Pontas de lágrimas se misturavam à vermelhidão da raiva, o rosto agitado, as mãos a ponto de serem capazes de agredir.
O guarda, surpreso e sem saber o que fazer diante do inesperado da situação, e aproveitando-se da circunstância de que quase todos os presos ainda dormiam, levou João ao banheiro da frente da delegacia, usado pelos funcionários. João entrou, fechou a porta, retirou o pequeno espelho da parede e sentou-se no chão, em desespero, mas também com alívio.
Olhou-se. E não segurou mais o choro. Não tinha, não, a coragem dos criminosos. Mas tinha a coragem que eles nem sempre tinham, que era a coragem de se olhar. E a cabeça de João correu por pensamentos que se seguiam como flechas lançadas a esmo: Sou eu. Sou eu mesmo. Mas minha pele está mais clara e no canto dos olhos a pele enrugou. E ainda sou eu. Eu que agora vou pagar pelo que fiz. Eu que não sei o que fiz. Nasci no sertão do fim do mundo e fui feliz, a não ser pela vontade de sempre sair de lá. E um dia saí. E tive meu destino nas mãos, e queria conhecer o mundo, e conheci São Paulo.
E João queria permanecer naquele momento por horas, mas foi interrompido pelo guarda que batia na porta irritado, dizendo que tinha mais o que fazer e que era bom ele abrir logo a porta antes que a arrombassem. João, quase apaziguado, recolocou o espelhinho na parede e saiu. Agradeceu e foi andando para a cela. Enxugou o rosto e deitou-se em seu colchão. O homem velho ainda estava sentado e os outros ainda dormiam. João olhava para o teto manchado e agora imaginava em cada mancha seu próprio rosto. Era como se, depois de ter se visto no espelho, pudesse reproduzir a imagem vista. Via-se agora em toda parte. João estava todo voltado para seu próprio universo. O mundo externo fugia-lhe, como antes tinha sentido fugir sua família e Clarinha e tudo o que preenchia sua vida antiga. Era só porque João era aberto ao que a vida lhe apontava e agora, preso sem culpa, nada lhe restava senão seu próprio corpo. João sabia que precisava viver no espaço que tinha, e seu espaço agora era só o do colchão onde esticava o corpo.
Fechou os olhos e aos poucos começou a ouvir outras vozes. Os homens acordavam, cada um a seu modo, e João não queria ver. Manteve os olhos fechados e se imaginava sozinho em seu quarto, ouvindo vozes que vinham da rua. E as vozes vinham de muito longe, como uma irrealidade que teimava em invadir a vida dos dias. E João não abria os olhos e teimava em ser só um corpo deitado na própria cama. Quando o sorriso de Clarinha invadiu sua mente cansada, sentiu de novo o calor das lágrimas e maior foi a perturbação que levemente o embalava, como o suave movimento de um barco. João viajava suavemente em um pequeno barco feito de memória e sonho. Quase não tinha mais realidade, porque a realidade que vivia lhe era irremediavelmente incompreensível e o forçava a buscar dentro de si caminhos para forjar um entendimento. Por isso as imagens todas que se acumulavam em sua mente lhe invadiam agora com a força do que é vivo e força um jeito de se mostrar. E era forçando a própria verdade que o rosto de Clarinha lhe sorria e lhe chamava ao passado, a um passado em que vivia e sonhava com a partida. Vivia em sonho, como quem está e não está presente, a um só tempo. João não era inteiro com Clarinha, porque sua alma, sem descanso, ansiava pela partida. Pecado de João tinha sido esse desejo de partir e deixar para trás a vida que era sua. Esta era a ideia que se insinuava a ele com jeito de verdade agora, este era o pecado pelo qual devia pagar.
E João não se perguntava sobre se era justo, ou não, ter que pagar por um pecado pelo qual não teve culpa. Pois não tinha sido ele o autor daquele desejo que o acompanhava desde que se lembrava de si mesmo, menino, correndo pela estrada, imaginando onde seria seu fim. Não tinha sido ele o criador da coragem que o impulsionara a correr até cair de sede e fome na terra vermelha. Não tinha sido ele o inventor da capacidade que teve de planejar e realizar a partida. Não. Ele apenas obedecia ao impulso que o empurrava. E João nunca chegou a pensar que parecia ser Deus mesmo a fonte do pecado.
E, junto ao sorriso de Clarinha, veio vindo as palavras de Padre Antonino. E João ficou pensando em si mesmo como o menino de coração puro. Sentiu então uma dor aguda que parecia gerada por um punhal que o cortava a partir de dentro, como se alguém o cravasse de dentro para fora, do coração ao peito. Coração de João sangrava por saber-se impuro como tudo o que existe. Só o que é puro é Deus, foi o que pôde de repente pensar e o que o aquietou e permitiu que seus olhos se abrissem outra vez. Ainda estava deitado de costas no colchão fino e fedorento e o que viu foi apenas a parede manchada. As vozes em volta estavam mais altas, o cheiro mais forte. Sentou-se e olhou em torno. O homem mais velho ainda estava sentado na mesma posição, e ainda olhava para João que tremeu ao sentir o olhar que o perseguia. Os outros, quase todos também sentados, conversavam uns com os outros. Eram quatorze homens apertados compartilhando a realidade. E João era um deles, e não se sentia igual a eles. Mas sabia que certamente nenhum deles se sentia igual aos outros. Eram ali igualados na condição de presos. Como estávamos todos igualados na condição de existentes, e presos que somos a nossos corpos. Corpo-prisão, corpo-liberdade: João se imaginava correndo de mãos dadas com Clarinha pela praça da cidade, o sorvete caindo, o beijo roubado, o sorriso gratuito. E se lembrou de repente de Danila e se levantou de um salto e grudou-se às grades da cela esperando por um guarda, os outros o olhavam, o homem velho disse ao companheiro ao lado: esse garoto não bate bem.
Quando passou um guarda, João disse que precisava ver o delegado. O guarda riu e disse que quando o delegado quisesse vê-lo, mandaria chamar. João sentou-se no chão frio de cimento, ainda segurando as grades e pensou em Lindalva, e precisava saber como ela estava, e precisava saber o que seria feito dela. Pensar em Lindalva deitada sem forças na cama de Danila era um fio de realidade a chamá-lo à vida concreta dos dias. Um fio frágil que não se manteria por muito tempo.
Logo veio o funcionário trazendo o café. Café fraco e pão de sal murcho com margarina. Estava bom: João comia sem se queixar. A comida sustentava de pé o corpo que não sofria. Corpo de João era forte e deveria manter-se assim, como a única segurança num mar cada vez mais revolto. João sentia-se como que numa jangada lançada ao mar, ele que fora criado no sertão e que do mar não conhecia o cheiro. Da secura das terras vermelhas de sua infância guardava o corpo rijo, a força de sobrevivência. A mesma força que tinha mantido Lindalva viva nas ruas de São Paulo que, apesar de cheias de gente, ecoavam a angústia desértica do sertão.
Ainda sentado perto das grades, João virou-se para o interior da cela enquanto mastigava o último pedaço de pão. Olhou sem medo para o rosto de cada um dos presos, e se perguntou se cada um deles sabia qual era o crime que tinha cometido. Quis mesmo perguntar a cada um deles, mas conteve-se na cautela que às vezes o segurava. E fez a si mesmo as perguntas todas que tinha. E não se cansava de procurar em si seus próprios crimes. E cada um que encontrava o enchia de alívio, pois tornava mais justa a realidade da prisão.
E assim, um a um, escoaram os dias passados na cela da delegacia. Algumas vezes o delegado o chamou para novos depoimentos, mas João nunca conseguiu ter nenhuma notícia de Danila. Não se comunicou com ninguém, e ninguém procurou por ele. O mundo lá de fora parecia ter desvanecido pela janela da cela.
Quando enfim chegou o dia do julgamento, João estava convencido da própria culpa, ainda que continuasse a contar sempre a única história que sabia, a história verdadeira, que dizia apenas de sua inocência. A culpa era mais antiga, até tentou explicar ao delegado, mas ele não quis entender e chamou um padre para conversar com o garoto confuso. O padre veio e ouviu João, e o abençoou e o perdoou, e o pediu que rezasse um terço antes de dormir naquela noite. João obedeceu e sentiu a presença da Virgem em seus sonhos. E até se sentiu perdoado, mas não livre de ter que arcar com as punições do mundo. E pressentia que Padre Antonino poderia compreender o que se passava nas veredas mais escondidas da sua alma. Não era de um perdão rápido que precisava. Era de perdão que passasse calmamente por cada pedra do caminho, revolvendo-as em todas as posições possíveis, fazendo aí a purgação.
Na hora do julgamento, João viu de longe vários homens que trabalhavam com ele no escritório. Procurou ansioso por Danila, mas ela não estava lá, o julgamento das mulheres seria em outro dia. Procurou por algum rosto conhecido no pequeno público presente, mas não viu nenhum. O que seria de Lindalva, meu Deus, era só o que pensava, e se acalmava imaginando que tinha voltado para casa.
O ritual foi rápido e sem nenhuma novidade. João repetiu mais uma vez sua história, um defensor público afirmou sua total inocência e pediu sua absolvição, o promotor afirmou sua culpa, minimamente por conivência. O juiz ouviu a todos e deliberou: dois anos e cinco meses de prisão por participação em quadrilha e cumplicidade criminosa, atenuadas por desconhecimento da própria situação.
João quase sorriu satisfeito, mesmo ante a indignação do defensor. Teria a punição que agora via como desesperadamente necessária para recuperar a si mesmo, mas ela não seria tão longa a ponto de fazê-lo adoecer.
E João, que queria conhecer o mundo, foi mandado a uma penitenciária no interior do estado.
No percurso até lá, algemado na traseira do camburão, ainda conseguia ver a estrada, e seus olhos de menino reviam a estrada antiga que partia de sua janela como um convite permanente. Na viagem a São Paulo, via sempre a estrada à frente, o caminho que vinha, que ia ainda ser pisado pelo ônibus, e sonhava. Agora, de costas no carro policial, via o chão já pisado, a estrada já passada, e só o que lhe restava era a lembrança. E foi lançando-se nas lembranças todas que tinha que João iniciou a purgação de seus crimes.
E se alguém lhe dissesse: levanta esses olhos e sonha, menino, que crime você nunca que cometeu nessa sua vida ainda tão pequena, João responderia com um sorriso cansado e voltaria os olhos para dentro outra vez.

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