quarta-feira, 16 de novembro de 2011

V

Quando o carro adentrou o grande pátio da penitenciária, deixando para trás o portão pesado e levemente enferrujado, João lançou os olhos ao novo espaço em que teria que viver. Ah, já não comia com os olhos cada pedaço de chão como quando percorria a estrada grande, de casa para a maior cidade do mundo; olhava agora quase sem apetite, apenas com o sentido do dever de conhecer que ainda o impulsionava. Não, João não pensava que tinha tido sua vida destruída, tinha perdido era só aquele viço, aquela alegria de ver o mundo que o fazia tão belo aos olhos das moças. Mas o brilho dos olhos ele ainda tinha, ainda que agora os olhos de João olhassem mais para dentro do que para o mundo, pois era no fundo de sua história que ele buscava a novidade, a terra nova e desconhecida, a descoberta capaz de fazê-lo sonhar outra vez com a vastidão das estradas.
Quando o policial abriu a porta traseira do carro e mandou que descessem, ele e os outros três homens que o acompanhavam, e dos quais não tinha tomado conhecimento, João desceu sem deixar de sentir o sopro da liberdade na leve brisa que passou por seu rosto, e, por um breve instante, deixou de sentir o contato das algemas. Respirou com prazer o ar impregnado do cheiro de terra e mato ainda úmidos da chuva fina que tinha caído ao longo de quase toda a viagem, e sentiu a dor nova de desejar estar em sua casa antiga, com o sertão a sua frente.
Caminharam devagar até a entrada do prédio, um imenso quadrado de cimento com dois andares. Os quatro presos foram encaminhados ao diretor do presídio que passou a eles informações gerais sobre o funcionamento da casa. A palavra reverberou estranha na cabeça pesada de João. Casa, aquela agora era sua casa. E ali nada era parecido com qualquer coisa que antes preenchia o significado da palavra casa; e o mundo pesava sobre o corpo curvado que quase não desejava mais. Mas mesmo assim, João ouviu com cuidado as recomendações, certo de que deveria cumprir todas as regras, sempre. Foram então levados para uma sala onde, um a um, deveriam ficar nus, ter os cabelos cortados, vestir as novas roupas, ser fotografados, para, enfim, serem admitidos como os novos moradores da grande casa. João passou por todo o rito sem se alterar. Fazia o que mandavam sem sentir-se humilhado. Depois do corte de cabelos sentiu de novo a ânsia de se olhar no espelho, mas, desta vez, conseguiu controlar. Tudo o que o impulsionava para movimentos para fora de si agora facilmente se recolhia e se transformava em um movimento interno. João inchava por dentro, à medida que sua vida externa era esvaziada.
Um pouco mais tarde, caminhando em direção à cela que passaria a ocupar, carregando nas mãos a roupa de cama, uma toalha e um uniforme limpo, João sentiu os olhos úmidos, mas não se ateve nisso. Seguiu olhando em torno e sentindo-se olhado pelos tantos homens com roupas e cabelos iguais aos seus. Somos todos iguais, somos todos iguais – a frase ecoava no corpo todo do menino que agora era só um homem entre os outros. E ele se perguntava se haveria algo além disso para se aprender na vida: era um igual aos outros. E, sem entender porque, foi invadido pela lembrança do corpo de Méri. Ela era diferente, Méri era em tudo diferente de todas as outras mulheres que conhecia. Mas não, que Clarinha também era diferente, e Danila tinha seu jeito que era só dela, e até Lindalva... e João se perturbava com a força das lembranças de mulheres, e num relance pensou em sua mãe, e os olhos se molharam mais, e as lágrimas quase escorreram e João de novo não se ateve, e de novo seguiu o caminho quase já no fim. Na porta de cela, parou por alguns instantes olhando para os três homens que já estavam lá. A cela não era pequena demais, tinha dois beliches encostados nas paredes e uma pequena estante com quatro prateleiras, cada um ocupava uma delas. Um dos homens estava sentado na cama, encostado na parede, lendo alguma coisa. Os outros dois estavam sentados no chão sob a janela, no espaço vazio entre os dois beliches. O rapaz novo os olhava nos olhos, e cada um deles o olhou de volta esboçando um leve cumprimento. Depois de vacilar por mais um instante, João entrou e colocou suas coisas na prateleira mais baixa, a única vazia. Uma delas, além do uniforme extra que todos tinham, estava cheia de livros e revistas. As outras duas não tinham mais nada. E João pensou, num átimo: tem uma diferença aí; e se perguntava: existe a diferença? E sentiu uma leve tonteira que o fez segurar-se na estante antes de se voltar para o interior do quarto. Quarto, cela. E quando se voltou, a primeira coisa que viu foi a minúscula janela no alto da parede, protegida por grossas grades. E aqui a grade não era para impedir a entrada de criminosos, era para impedi-los de sair. E então olhou para os companheiros, criminosos como ele. Bandidos. Como ele. Homens de uniforme e cabelos quase raspados. Como ele. E a imagem da estante de livros, e a diferença impondo sua realidade. E o torpor voltando enquanto procurava qual seria a cama vaga, precisava se deitar. O rapaz com o livro nas mãos foi o primeiro a dizer alguma coisa, apontando para a própria cama:
– Você fica aqui, em cima de mim.
Os outros dois apenas olharam concordando, sem esconder o gozo com a ironia insinuada. João, trêmulo, subiu a pequena escada do beliche e se deitou sobre o colchão sem lençol. Deixou a roupa de cama no canto, arrumaria depois. Deitado de frente, os olhos pregados no teto da cela, que era agora seu quarto, a cabeça rodava vertiginosamente como se estivesse bêbado, ele que não conhecia essa sensação. Todas as impressões se faziam presentes, mas misturadas umas com as outras num carrossel que corria em moto contínuo. A diferença, a igualdade. Entre bandidos, ele que não era um deles. Não era? A certeza da culpa a ser expiada se confundia com o fato real de não ter sido culpado na ação que o levou à prisão. E pela primeira vez pensou: eu não devia estar aqui. E se culpou pela soberba do pensamento e não se fixou nele. Era um igual, só isso. E o homem dos livros subiu o primeiro degrau da escadinha do beliche e o olhou de perto.
– Como é seu nome?
– João.
– Eu sou Vasco, mas todos aqui me chamam de Vavá. Seja benvindo à nossa cela.
– Obrigado.
O rapaz o olhou mais um pouco e percebeu que ele não estava bem.
– Você está muito pálido. Está se sentindo mal?
– Já vai passar, foi só uma tonteira.
– Você é inocente, não é? Os culpados nunca sentem nada quando entram aqui. Eu também sou inocente, quer dizer, fui inocente na intenção, sabe? Matei meu homem com uma faca de cozinha, mas eu não queria, o que eu queria era só mostrar pra ele que eu também podia ser macho, quis machucar pra mostrar que ele não devia ficar saindo com mulher para fingir pros outros que era macho, que a gente podia mostrar isso de outro jeito, sabe? É que ser homem é uma coisa e querer ter mulher é outra coisa, e isso ninguém entende. Então eu matei e sou culpado. Mas não queria matar e por isso acho que sou inocente. E então estou aqui e agora vejo você que parece mais inocente do que eu. Por que é que você está aqui?
Um dos dois lá do chão falou antes que João conseguisse pensar no que responder:
– Deixa o moço em paz, perua, não vê que precisa descansar?
– Só quero ajudar, seu brutamontes. E perua só tem aqui no dia que a sua vem te visitar. Não vai querer você também saber do que posso fazer com quem duvida que sou homem.
O outro riu e se calou. João se deixou levar pela vertigem e adormeceu.
Despertou muitas horas depois com o barulho dos talheres na grade da cela, era hora do jantar. A comida era um pouco melhor do que a que tinha comido por meses na delegacia, e João comeu sem se queixar. Sentia-se revigorado pelo sono e agora pronto a olhar em torno e começar a conhecer sua nova casa. Logo depois do jantar, tiveram tempo para circular um pouco pelos corredores e ir ao banheiro. João lavou o rosto e as mãos e pôde sentir um leve prazer: cuidar do corpo ainda o confortava, como uma luz esgueirada pela fresta da porta fechada. Pensou que gostaria de se barbear, mas não era permitido portar nenhum tipo de objeto cortante... e João quase riu imaginando-se perigoso por ter em sua estante um barbeador; mas cortou o riso com a consciência clara de que muitos ali seriam, sim, perigosos com uma gilete nas mãos. Não teve medo, teve respeito, e olhou em torno de si. O banheiro estava cheio, muitos homens com a barba por fazer, como ele, esperando pelo barbeiro que só vinha aos sábados. Pegou sua escova de dente e saiu em direção à cela, sem olhar muito para os lados, mas também sem abaixar a cabeça. Era um entre eles, e não tinha o que temer.
Foi o primeiro a voltar para a cela, e se demorou um pouco olhando os títulos dos livros de Vavá. Eram quase todos livros de estórias de amor, daqueles que Clarinha gostava de ler e que ele às vezes folheava com ela. Tinha também revistas dessas que contam a vida dos artistas da TV. Vavá gostava do que gostavam as moças, mas era capaz de matar como um homem bruto. E João pensou que ele próprio era todo o contrário disso. Mas não se ateve no que pensou, porque já nem sabia mais do que é que gostava ou não. Estava ainda lendo os títulos dos livros, quando Vavá entrou e ficou parado ao lado dele olhando-o.
– Pode pegar, se quiser ler também.
João agradeceu e se sentou no chão sob a janela, onde os outros dois tinham passado a tarde. Vavá o olhou com jeito de querer falar alguma coisa, mas os outros entraram antes. Entraram e empurraram João com força, dizendo que aquele lugar era deles e que o garoto não se atrevesse a enfrentá-los. Ele os olhou com quase desprezo e se sentou em outro lugar, no cantinho de parede que restava entre seu beliche e a estante. Vavá se sentou na beirada da cama, próximo a ele, e olhou para os outros com raiva. Mas não disse nada, que hoje já os tinha provocado além da conta. Sabia com quem lidava e às vezes conseguia pensar em se proteger. Pensou que o coitadinho do João ia ser presa fácil para os desatinos daqueles dois.
– Vocês não vão se apresentar para o moço, não? Eu mesmo faço isso então. João, aquele ali é o Raimundo e o outro é João também, como você; é João Ronaldo, mas chamado de João mesmo.
João olhou outra vez para os dois, agora nomeados. Raimundo, alto, magro, barba por fazer, pele morena mal cuidada, marcas de machucados, cortes, pancadas, olhar vazio. O outro João era mais baixo, menos magro, pele bem clara, barba criada, olhos esverdeados e muito rudes, difíceis de encarar. João sentiu-se pequeno e quase pôde enxergar a estrada de sua infância, o convite permanente em frente a sua janela, a vontade de conhecer o mundo... e agora, meu Deus, o que há para ver aqui? Viajar para dentro de mim, para dentro dos olhos dos outros, é só, e João, que sonhava com a amplidão do mundo, se viu forçado a comprimir-se em si mesmo. E não conseguia ver que a amplidão está também por dentro.
Ficaram os quatro sentados na mesma posição por algum tempo, até João Ronaldo começar a falar:
– Olha, garoto, a vida aqui dentro é muito boa para quem não cria confusão. Eu e Raimundo somos os donos dessa cela aqui, e você não deve tentar sair da regra, se quiser ficar em paz.
– E qual é a regra?
Vavá o olhou assustado e tentou fazer sinal para que ele ficasse calado, mas João não viu, olhava fixamente para o outro João. Mas desta vez foi Raimundo quem respondeu, levantando-se:
– A regra é aquela que nós colocamos, e pode mudar. Não tente ser espertinho – quando terminou de falar, estava em pé em frente ao garoto que o olhava sem medo.
João então se levantou também e subiu para sua cama. Deitou-se de lado, virado para a parede e se cobriu. Raimundo ia puxá-lo de lá, mas passou um guarda em frente à cela, desconfiou do movimento estranho e ficou parado olhando-os. João Ronaldo fez sinal para Raimundo se sentar e os ânimos se acalmaram. Vavá tremia o corpo inteiro, de medo e raiva, e os outros dois se animavam prevendo que teriam trabalho com João, o que os divertia. Mostrar a própria força e o arremedo de poder que conseguiam manter dentro das grades do presídio os mantinha sempre em alerta.
E João, ainda virado de costas e tentando em vão dormir, apenas queria entender o que aqueles dois queriam dele. Não tinha medo, nem raiva, só aquela vontade de não fazer o que não entendesse. Nunca pretendeu descumprir regras, seguiria sem sofrer todas as regras impostas pela penitenciária, mas não estava disposto a ficar nas mãos daqueles dois. Sua mente fervilhava com o turbilhão de pensamentos que o invadia sem terem sido ainda compreendidos e, muitos deles, mal percebidos com clareza. A culpa. O crime. A necessidade intensa de entender qual tinha sido seu crime, e como poderia expiá-lo. E agora essas tantas coisas no meio do caminho, pessoas em torno, relações difíceis, e João nunca soube se adequar, só sabia agir sincero, dizendo e fazendo o que lhe parecia verdade. As luzes se apagaram enquanto ele pensava que era apenas isso, devia continuar agindo de acordo com o que pensava e, se viesse a morrer por isso, aceitava.
A noite passou rápida, o sono foi pesado como só um corpo muito cansado consegue ter. Acordou na manhã seguinte com o barulho dos guardas trazendo o café da manhã e abrindo as celas para irem aos banheiros. E João foi o primeiro a sair do quarto, ansioso por sentir o contato da água com as mãos e o rosto: tinha fome de sensações. A cabeça ainda confusa não o deixava parar, os pensamentos se misturavam com desejos que mal conseguiam se mostrar, como a saudade de andar pelas ruas e ver uma ou outra moça daquelas que fazem um dia alegre só por existirem. E João mais uma vez pensou em Méri e se lembrou de seus primeiros dias em São Paulo, há tanto tempo atrás... quanto tempo, meu Deus? João não conseguia ter certeza em relação ao tempo, um ano, dois anos, ou a vida toda, as dimensões do tempo também se misturavam e rodavam junto a tudo o mais que balançava sua mente perdida. Mas não sofria, não seria essa a palavra para o que sentia. Não era dor, era antes um não-saber, uma impossibilidade assombrosa de entender o que se passava. Como muitas peças de um grande quebra-cabeça embaralhadas à sua frente. As peças estavam todas lá, aparentemente, mas não se juntavam, não havia encaixes possíveis para elas. Mas, pelo menos, João sabia que devia se segurar a alguma coisa para não se perder de vez, e se segurava à realidade imediata, seguia as regras, comia, ia ao banheiro e, nesta sua primeira manhã no presídio, estava ansioso para conhecer o pátio onde tomavam sol. Sol que não tinha visto a não ser pelas frestas das janelas, desde que tinha sido preso na delegacia, ou pelos vidros dos carros que o tinham transportado para o julgamento e agora para a penitenciária. Daqui a pouco poderia ver o céu aberto e, se conseguisse se inserir nos grupos de trabalho das hortas, teria a chance de tocar novamente a terra, e toda sua vida se juntou num átimo de sentimento quando se imaginou com as mãos sujas de terra e o nariz impregnado do cheiro tenro da terra molhada. No sertão, quando chovia, a alegria era tanta que o cheiro da terra molhada ficava impregnado na memória de cada um que tinha tido a chance de senti-lo. E João se lembrava das poucas vezes que teve a chance de plantar com seu pai nos canteiros úmidos, e da alegria de ver nascer o verde na terra avermelhada, mas também da tristeza de ver tudo morrer seco pelo sol que voltava sem piedade. A terra do sertão era fértil, mas a falta de chuva a tornava estéril. E João, perdendo-se em lembranças, distraiu-se lavando as mãos, e foi sacudido por um dos tantos que esperavam pela vez de usar uma das pias. O banheiro era grande, vários chuveiros, várias pias, vários mictórios e reservados com vasos sanitários, mas não o suficiente para que todos o pudessem usar com conforto. Conforto. João quase riu de si mesmo por pensar em conforto ali, e demorou-se um pouco parado no meio do banheiro olhando em torno, respirando fundo para bem guardar o cheiro, e voltou para a cela sentindo-se bem. Pelo menos estava firme em si mesmo e a cabeça, se ainda rodava, não o tonteava como no dia anterior. Vavá também voltava do banheiro e chamou João antes de entrarem na cela. Recomendou que tomasse cuidado com Raimundo e João Ronaldo. João respondeu sorrindo que não se preocupasse com ele não, e agradeceu o cuidado. Vavá o olhou assustado, pressentindo que alguma coisa não demoraria a acontecer, que aquele garoto tinha uma coisa estranha no olhar, um jeito de não se adequar que acabaria levando-o a ter problemas.
Entraram juntos na cela e os outros dois estavam acordados e já sentados em seu lugar cativo. João disse bom dia e sentou-se naquele que viria a ser seu canto habitual, aos pés da cama de Vavá. Pegou seu café da manhã, café ralo muito doce, um pão de sal com manteiga, uma banana. Comeu tudo em paz e perguntou a que horas sairiam para o banho de sol. Vavá respondeu que ficavam lá de oito às onze, e que o pátio era amplo e agradável. João perguntou também sobre as possibilidades de trabalho lá dentro, tinha ouvido falar da horta e do trabalho na cozinha, e Vavá explicou que era um projeto ainda em andamento e que, por isso, não atendia a todos os presos, então eram escolhidos, de acordo com o comportamento, os que poderiam participar. Contou também que já tinha participado do trabalho das hortas, mas acabou se metendo em uma briga com um preso que vivia provocando-o, e foram os dois retirados da equipe, e agora não teria uma segunda chance; contou também que Raimundo e João Ronaldo nunca tinham sido chamados, que eram considerados presos não colaboradores. João sentiu-se bem, determinado a conseguir ingressar na equipe de trabalho, com o que se ocuparia, sentiria o cheiro da terra e ainda passaria os dias longe dos dois companheiros de cela. Com Vavá poderia conviver bem, e era uma pena que ele não tivesse conseguido aproveitar a chance que teve. Perguntou também se recebiam visitas de religiosos, pois andava muito precisado de conversar com um padre, e soube que todo domingo tinha missa e horário para confissão e que pastores e representantes de outras igrejas também vinham com frequência.
Logo ouviram o barulho dos carcereiros voltando com as chaves para conduzi-los ao pátio. Saíram todos andando devagar em filas desorganizadas. Ainda sem pressa, ocuparam o pátio todo. Era mesmo um espaço grande e João respirou com liberdade. O céu estava azul, mas uma brisa suave amenizava o calor. Vavá chamou-o para sentar com ele. Juntos, olhavam os outros presos. Era a primeira vez que João via todos eles juntos, quase trezentos homens reunidos em um único espaço, procurando um lugar. Um lugar ao sol, a frase gasta ressoava na mente do garoto que se procurava entre as sombras. Entre os sonhos que tinha, e que o levaram até ali. Vavá tentava chamá-lo a conversar, mas o esforço era em vão. João se esforçava, respondia uma ou outra pergunta, mas não conseguia se fixar. Perdia-se ao mesmo tempo nos próprios pensamentos e na visão daqueles homens todos. Todos culpados. Como eu. E João procurava em todos eles os sinais que os fariam iguais a ele. Não encontrava nada além daquilo que o igualava a todos os outros homens do mundo. Todos culpados? E o pensamento atingia o limite do impossível e João se angustiava e queria andar, mover-se de onde estava. Levantou-se e saiu andando, chamou Vavá, mas ele preferiu ficar quieto, gostava de manter distância daqueles marginais todos, a não ser quando vinha o desejo de se encostar em um deles, tentar um arremedo de carinho, buscar um jeito de aguentar melhor aquele vazio todo que sentia por dentro desde que seu homem não existia mais, e sentia uma dor de arrependimento, uma vontade de fazer o tempo voltar e perdoar e não brigar e não matar. Tinha matado, e antes de matar tinha amado, queria ser dele, sempre, e agora estava só e preso e com a culpa de ser a fonte do próprio sofrimento. E olhava de longe o garoto que caminhava sem medo entre os presos, e pressentia de novo que alguma coisa ia sair do esquadro, o menino mexia com os ânimos dos outros, porque olhava de um jeito diferente, porque olhava sem medo e sem dor, mas cismado em si mesmo. Resolveu se aproximar quando viu que tinham puxado conversa com ele. Ouviu que perguntavam se era novo lá, de onde tinha vindo, o que tinha feito. E ouviu a resposta que João repetia sem constrangimento:
– Ainda não sei, mas vou descobrir.
E viu o deboche com que o olharam, e a vontade que teve foi de puxá-lo de lá e convencê-lo a ficar calado, mas a conversa continuou.
– Prenderam você aqui para pensar, foi?
– Não. Me prenderam por causa da quadrilha. Eu era parte de uma quadrilha sem saber, não tive culpa. Mas sei que alguma culpa eu tenho, e vou descobrir qual é.
– Quadrilha de quê, com esse jeito sonso? Você fazia o que na parada?
– Eu era vendedor da loja. Mas as coisas vendidas eram roubadas. Quadrilha de roubo de cargas. Eu não sabia. O juiz acreditou, mas vou ter que cumprir pena por participação indireta. Eu aceitei, assim posso pagar pelas outras culpas.
– Você é doido, menino, vai tratar de dar um jeito de sair logo daqui, não tem advogado, não? Se ficar aqui, vai ficar doido de vez. Além disso, você é bonito, daqui a pouco vão começar a te cercar por aí, tentando te usar. Cuidado com a aids e a com a conversa mole desse pessoal aí.
Vavá se surpreendeu com o rumo da conversa, gostou do jeito do homem grande e de fala mansa que tinha conseguido cuidar de João como ele gostaria de fazer. Se aproximou mais e perguntou o nome do sujeito. Era o Betão, preso por tráfico. Vavá pensou que era um cara bom, que ia sair e se recuperar. Diferente dele, que perdia a cabeça quando ficava tomado de desejo, e era capaz de fazer bobagens, até matar o homem que era seu.
Saiu andando com João, em silêncio.
Do emaranhado de pensamentos que perturbavam a mente de João, um ou outro parecia sobressair por entre a massa confusa, e seriam os anzóis que o garantiriam preso à realidade. O propósito de trabalhar e a decisão de desvendar e expiar a culpa que o tinha levado à prisão eram agora os principais fios que o sustentavam.

No primeiro domingo que amanheceu na penitenciária, levantou à primeira luz do dia, ansioso pela chegada do padre. A missa era às dez horas, mas Vavá tinha dito que o padre chegava mais cedo e tinha tempo para conversar com um ou outro que o procurasse. João passou as primeiras horas da manhã colado às grade da cela, para ser o primeiro a vê-lo. Pediu ao carcereiro para avisar logo ao padre que precisava muito falar com ele. Um pouco depois das nove, vieram chamá-lo, o padre estava na capela e já tinha sabido do garoto recém chegado que parecia meio perturbado da cabeça. João soube depois que o Betão era um preso muito bem relacionado, que fazia parte da equipe de trabalho da horta, e que tinha conversado sobre ele com o diretor do presídio.
Entrou ansioso na capela e viu o padre sentado no primeiro banco. Ajoelhou-se na frente dele e o cumprimentou de cabeça baixa. O padre era jovem, tinha olhar forte e um sorriso muito aberto. João começou a falar, rápida e desordenadamente, com medo de não ter tempo de falar tudo.
– Padre, não fui batizado porque onde nasci não tinha padre quando eu era pequeno. Depois, já grande, quis batizar, mas Padre Antonino disse para eu não me preocupar, que Deus não perdia tempo com o pequeno e que eu tinha o coração puro. Mas agora estou aqui, e sei que sou culpado e preciso descobrir qual é minha culpa, e talvez a culpa seja a falta do batismo, não é?
– Calma, João, senta aqui do meu lado. Meu nome é Cláudio e venho aqui todo domingo, teremos tempo para conversar sempre que você quiser. Mas, olha, o Padre Antonino tem razão, Deus olha mais longe, não precisa se preocupar com o batismo, mas, se quiser mesmo, podemos te batizar aqui.
João se levantou e se sentou ao lado do Padre Cláudio.
– Eu quero sim, Padre, eu quero me batizar, e queria também ter uma bíblia aqui comigo, me arrependi de não ter pedido uma ao Padre Antonino, o senhor pode me dar uma?
– Na semana que vem trago para você. Mas olha, João, conversei com o diretor sobre seu caso, e ele sabe, como o juiz também sabe, que você não teve culpa direta no que aconteceu. Pegou uma pena pequena que poderá ser bastante reduzida, se se comportar bem. Se tudo correr bem, você poderá sair daqui a um ano.
– Mas devo ser culpado, não é Padre? Deve haver uma outra culpa, uma outra coisa que fiz e que me mandou para cá. Uma punição por alguma coisa que fiz e que ainda não sei o que é, e que deve ter sido uma falta, um pecado.
O Padre então respirou mais fundo, começando a entender o que se passava na cabeça do garoto.
– João, você conhece bem a história de Jesus? – E continuou depois do gesto afirmativo de João – Pois então, João, Jesus veio dizer que Deus é amor, que Deus quer se relacionar conosco pelo amor, e não pelo castigo e pela culpa como muita gente ainda pensa por aí. Você está aqui por uma fatalidade, por ter se envolvido com pessoas em quem não devia ter confiado, por ter sido ingênuo e simples.
João escutava as palavras do padre, incrédulo. Eram as palavras mais óbvias, e ele sabia disso, era o que todos diziam sobre o que tinha acontecido, mas João nunca foi de pensar como era esperado, e continuou:
– Sou culpado por não saber. Acho que preciso saber de mim para pagar as culpas que tenho.
O padre tocou o rosto de João com ternura e o convidou para trabalhar com ele nas missas, ser uma espécie de coroinha. Prometeu também que conversariam por pelo menos quinze minutos, todo domingo. Foram então interrompidos pelo barulho dos outros presos chegando. Faltava pouco para o início da missa, e mais alguns homens queriam conversar com o padre. João ficou sentado onde estava, na primeira fila das cadeiras de plástico espalhadas por todo o salão que hoje servia de igreja, mas que era também palco para shows e espaço para festas no natal e na páscoa.
Quando a missa começou, o silêncio levou João de volta às missas na igrejinha de sua cidade, à voz de Padre Antonino, à mão de Clarinha segurando na sua, a professora Paulina sempre por perto, o pai e a mãe, os irmãos todos. E João sentiu uma calma que há muito tempo não alcançava, e quase conseguiu de novo desejar. E o que desejava, quando desejava, era sempre o mundo, o mundo inteiro.
Na hora da comunhão, não conseguiu ir, sentia-se impuro, mas o padre o chamou, dizendo que a conversa que tinham tido tinha sido uma confissão, e que ele estava sim, pronto a comungar. João quis dizer alguma coisa sobre o batismo, sobre não ser batizado, sobre comungar em sua igrejinha antiga sem realmente poder, pois sem batismo e sem a primeira comunhão não podia, mas o padre não o deixou falar, outros presos esperavam, e ressoou em sua mente a frase de Padre Antonino, Deus não se preocupa com o pequeno. E João recebeu a hóstia e ajoelhou-se em frente a sua cadeira e, concentrado em si mesmo, quase sentiu as mãos de sua mãe tocando seu rosto de menino, e os olhos se molharam e teve vontade de se entregar àquele chão e descansar. Só descansar, era só o que precisava.
Mas a missa acabou e João, de pé, despediu-se do padre que o abraçou com cuidado, dizendo que na próxima vez combinariam o batismo e que, se ele não tivesse ninguém, poderia convidar sua irmã para ser a madrinha. João aquiesceu e pensou que Vavá poderia ser o padrinho.
Duas semanas depois aconteceu o batismo. Vasco, o padrinho. Severiana, irmã de Padre Cláudio, a madrinha. E João sentiu-se nascer mais uma vez através de pessoas que mal conhecia, mas que davam a ele a exata coisa de que precisava agora. Uma parte de sua alma se aquietou e sentiu que tinha dado o primeiro passo. Não sabia ainda quais seriam os outros, e nem onde eles o levariam. Mas soube que estava a caminho, e isso o alimentava.
Completado o primeiro mês na penitenciária, sem ter causado nenhum problema, sem ter se envolvido em nenhuma briga, tendo conseguido se safar das provocações de Raimundo e João Ronaldo, com o conforto das conversas com Vavá e a ajuda do Betão, ingressou na equipe de trabalho das hortas. E João sentiu, de novo, que dava mais um passo. Desta vez, um passo na direção da ajuda que procurava em si mesmo. A terra, o trabalho, o silêncio, tudo isso o ajudaria a entender-se mais, a encontrar por dentro de si o caminho a ser feito. E agora já pressentia que o que o chamava no fim da estrada era somente a esperança de sentir-se inteiro de novo, de poder se deitar para dormir com a cabeça tranquila, de poder amanhecer e olhar o sol sem medo, de poder olhar as ruas e desejar percorrê-las, sentir o chamado do trabalho, querer tocar uma mulher, querer, quem sabe, fazer o caminho de volta.
E o caminho de volta seria voltar pela estrada que um dia o tinha chamado à viagem. Seria reconhecer cada pedaço da estrada, seria ver de longe a janela de seu quarto, de onde tanto tinha sonhado em partir. Seria reencontrar os olhos de Clarinha e se buscar dentro deles.
E João ainda não sabia que era isso o que faria quando voltasse à liberdade das ruas.

Em seu primeiro dia de trabalho, respirou com força à procura de cheiros antigos, aromas que provocassem lembranças, e tocou a terra com as mãos abertas, também à procura de lembranças que o salvassem de ser sem chão, de ser sem história. João, que em São Paulo tinha querido recomeçar de um ponto novo, deixando para trás tudo que o marcava antes, e que tinha feito isso sem ter planejado, apenas aceitando o jeito novo que surgiu de dentro dele mesmo, era agora forçado a buscar em si pontos de apoio, sustentação para o pouco que ainda tinha. E as lembranças, principalmente aquelas que vinham carregadas de sentimento antigo, eram pontes fortes para ajudá-lo na travessia que vivia. Travessia estranha porque ele não sabia onde estava e nem para onde rumava. Apenas sabia que devia seguir. E que, estranhamente, o futuro e o passado se misturavam. Seguir e retornar eram duas atitudes que se tornavam, pouco a pouco, permeáveis.
E João passou o dia plantando, colhendo, remexendo a terra, podando, cuidando. E, ao mesmo tempo, cuidava de si. Conversou com os companheiros, mesmo que pouco. Olhou um ou outro com mais atenção. Procurou por Betão e soube que havia um rodízio para que uma vez por semana todos fossem para o pátio na hora do banho de sol, para manter alguma convivência com o restante dos presos. E, quase no fim da tarde, quando já guardavam o material usado durante o dia, conheceu o Severino, um homem já bem velho, preso há dez anos por ter assassinado as três irmãs com quem morava desde a infância. João o olhou dentro dos olhos, e lá não viu nada. Não teve medo dele e nem o julgou. Ele já pagava pelo que tinha feito. Era um preso exemplar, trabalhava na horta desde o primeiro dia do projeto, tinha conhecimento e muita disposição. E João mais o olhava, à medida que ouvia suas histórias. Severino gostava de falar, contava de seus anos na prisão como quem conta de uma vida comum. Para ele, viver entre as grades era o mesmo que viver lá fora, achava que toda vida era mesmo entre grades. Nunca falava das irmãs, e João quase pensou que deviam ser elas as grades que o tinham prendido antes. Gostou de ouvir o velho e nos próximos dias passaria a trabalhar sempre ao lado dele, deixando-o falar, aprendendo sobre o cultivo, procurando pistas sobre como ele lidava com a própria culpa. Mas Severino nunca falava em culpa, o que muito intrigava o garoto que andava em círculos, à procura de entender sobre a própria culpa.
Um dia falou com Padre Cláudio sobre Severino. O padre disse que o velho tinha cometido o crime em meio a um surto psicótico, quer dizer, estava louco quando matou. E está preso por dez anos por ter ficado louco? João não entendeu, mas o padre apenas comentou que ele próprio estava preso há meses por ter sido ingênuo.
– Então não existe justiça, Padre?
E o padre o olhou cansado e não conseguiu responder. Mas João não desistiu.
– A justiça é injusta, padre?
– A justiça de Deus não falha, João. Mas tudo que o homem faz é cheio de falhas. Acho injusto que você esteja aqui, mas acho justo que os líderes da quadrilha estejam presos. Não sei se é justo que Severino esteja aqui por tanto tempo, porque a verdade é que, solto, ele poderia ser novamente perigoso, e não tinha ninguém para cuidar dele, e, vê, ele vive feliz aqui.
– Feliz? – E João não acreditava que se pudesse ser feliz ali, ou mesmo em qualquer lugar. – É possível mesmo ser feliz, Padre?
E João tinha os olhos brilhantes, e o padre não soube se era chama ou lágrima, e teve só vontade de deitar a cabeça do menino em seu colo e rezar.
E a cabeça de João rodava na incompreensão e ele ainda ansiava por uma ilha de paz, onde pudesse entender, um pouco que fosse. Não entender para ele significava estar solto em alto mar em um pequeno barco sem proteção. Não entender era o perigo mais pungente. E continuou:
– Padre, se a justiça de Deus não falha, então é justo que eu esteja aqui, pois tudo o que acontece tem as mãos dele, não é?, e então é por isso mesmo que acredito que tenho uma culpa, uma culpa escondida pela qual devo pagar.
E o padre se assustava porque nunca tinha visto alguém levar assim às últimas consequências cada frase que ouvia. E o raciocínio estava certo, mas as conclusões, não. E o padre se esforçou para se fazer entender.
– Deus está em tudo, mas isso não quer dizer que ele concorde com tudo que acontece. As ações humanas são livres, João, Deus não tem o poder de interferir no curso de cada coisa. Às vezes sentimos como se Ele interferisse, mas nunca podemos ter certeza disso. Você tem que aceitar que está aqui por uma fatalidade, e que logo vai sair. Você está paralisado, com o pensamento paralisado, e não deve continuar assim.
– Outro dia pensei que meu pecado foi ter deixado minha casa, minha família, minha terra, minha namorada. Se eu voltar, acho que posso ficar bem de novo.
– Mas você já me contou que a vontade que tinha de conhecer o mundo era a coisa mais forte e mais bonita que sempre sentiu, desde pequeno.
E João sorriu pela primeira vez diante do padre com a mesma força de antes, um sorriso que tinha o brilho todo do mundo.
– Era sim, Padre. Mas não deu certo, não é? Foi pecado de querer ser feliz demais e não ficar satisfeito com o que eu tinha.
E a sombra voltou para o seu rosto e o padre ainda tentou, mas não conseguiu, interferir naquele jogo estranho de desejo e culpa que se passava na alma do menino.
– Querer ser feliz demais não pode ser pecado, João, porque eu acho que é bem isso que Deus espera de todos nós. Nem sei mesmo se Deus entende essa coisa que nós inventamos chamar de pecado. Deus ama, João, e perdoa, então não existe o pecado. Existem os erros, os enganos, os azares, e temos que saber passar por tudo isso e continuar desejando a vida. E o desejo pela vida, esse sim, acho que vem sempre de Deus.
E João saiu dessa conversa mais leve, mesmo com a cabeça ainda rodando em círculos vazios. A leveza vinha da decisão tomada: quando saísse, voltaria para casa e para Clarinha. Cuidaria dos pais e de Lindalva, plantaria uma horta, contaria para Clarinha sobre Méri, Danila e as outras tantas moças que conheceu. Contaria a todos sobre a prisão e sobre as dores todas que viu, sobre como São Paulo é grande e cheia e barulhenta. Contaria sobre Tonico e sua volta para casa, sobre Bráulio, sobre a loja, sobre o dia em que encontrara Lindalva. Procuraria saber do que tinha acontecido com ela e com Danila desde o dia de sua prisão. Se Lindalva não estivesse em casa, voltaria a São Paulo para procurá-la e trazê-la de volta. Se Clarinha ainda o quisesse, se casaria com ela e teriam a família com que tinham sonhado antes.
E, num instante só, o sofrimento que o perturbava se transformou em esperança. E o futuro novamente o convidava, como quando era criança e olhava a estrada e a estrada era o futuro. E o futuro agora era o retorno. E o retorno seria a expiação da culpa, e o erro tinha sido a partida.
Tomar nas mãos o próprio erro salvava João da perturbação que o vinha consumindo. Sua estrada agora tinha se iluminado outra vez. E a luz era nítida e clara, e João novamente não tinha dúvidas. Não imaginava que a falta de dúvidas poderia ser sua perdição. Ancorado na certeza que era consolo e alívio, João seguiu vivendo. Passava cinco dias por semana no trabalho da horta, conversava com Severino, ouvia sobre a vida do velho e aprendia tudo que podia sobre o trabalho. Procurava saber sobre como manter uma horta sem chuva e sem dinheiro para fazer a irrigação. Aprendia e planejava um futuro.
Um dia por semana ficava com os outros presos, conversava com Vavá, lia um pouco dos livros dele, se safava de Raimundo e João Ronaldo como podia. Não dava muita atenção a ninguém, mas também não se desinteressava completamente. Muitos ainda o olhavam com jeito estranho, mas ninguém se atreveu a incomodá-lo, sabendo que Betão estava de olho nele. Não sofreu assédio, nem foi atacado. Vivendo sua vida e olhando mais para dentro do que para fora, se esgueirava de perigos. Vavá continuava encantado e temeroso, ainda pensando que o menino ia sofrer alguma coisa por lá, e, por isso, não saía de perto dele quando não estava no trabalho.
Aos domingos, missa e tempo livre maior. E era o dia da visita. Ninguém nunca veio vê-lo, e João não sabia o que isso significava. Não tinha também procurado por ninguém, não tinha dado nenhum telefonema e nem escrito nenhuma carta. Mas Lindalva, ela devia saber do que se passava, pois estava na casa de Danila quando tudo aconteceu. E Méri, não teria sabido também, não teria como descobrir onde estava, não teria interesse em saber? No domingo, quando as visitas começavam a chegar, essas perguntas rodavam pelos olhos de João, mas ele não se deixava fisgar pela tristeza. Confiava em vir a entender o que tinha se passado quando voltasse às ruas.
E se sentava num canto qualquer do pátio e se punha a observar os presos e suas visitas. A mãe de Vavá vinha todo domingo e trazia um bolo. João sorria quando a via, e às vezes o amigo o chamava para conversar com eles. Algumas vezes, vinha também a irmã. Era uma moça muito triste, corpo pesado, olhar perdido, Vavá dizia que era deprimida e que nunca tinha tido um namorado, e João tinha vontade de dar um beijo nela para ver se aqueles olhos brilhavam um pouquinho que fosse. Mas só a olhava, sem coragem de perguntar de onde vinha a tristeza toda que carregava. A mãe era mais forte, tristeza que tinha era só a de ver o filho daquele jeito. Saber o filho capaz de matar. Mas era seu menino e quando o olhava só via os mesmos olhos que a acompanhavam desde sempre.
E João se distraía olhando os outros presos. E via os casais e os que entravam para a visita íntima e sentia uma comichão no corpo, era desejo. Mas desejo por ninguém, desejo só de sentir de novo a alegria do corpo. Alegria de ter um corpo que grita de prazer. E pensava que com Clarinha essa alegria seria ainda maior, porque vinha com a alegria da alma, que Clarinha era seu sossego. E sentia que o desejo de partir era agora todinho o desejo de voltar. E voltar e partir se embaralhavam em um jogo de espelhos que ele já não conseguia acompanhar, e então voltava de novo o olhar para o pátio e ouvia o burburinhos das conversas, e tinha saudade da pensão onde suas coisas tinham ficado, e tinha saudade do cinema vagabundo de sua cidadezinha, e da sorveteria, e se lembrou do primeiro beijo que deu em Clarinha, do picolé caído, da tremedeira nas mãos. E sorriu por dentro, sentindo de leve o tremor antigo, tremor de desejo.
Perdido que estava na lembrança e no sonho, não percebeu que Vavá o chamava, e sentiu o corpo todo esquentar quando o amigo o tocou de leve no braço, despertando-o para a conversa. Olhou Vavá com susto e teve medo de que ele tivesse percebido a estranha sensação que o tomou por dentro, no corpo todo. Com muito custo conseguiu ouvir e responder às perguntas que a mãe dele fazia sobre sua família, sua cidade, sua vida. Quando mais tarde estavam os dois sozinhos na cela, mais ainda se angustiou ao perceber que o companheiro o olhava com força. Com desejo, pensou rapidamente, e tentou se esconder em si mesmo. E teve então a percepção clara de que ele sempre o tinha olhado assim e de que ele próprio é que não tinha percebido antes. E perceber agora, depois daquele calor no corpo, significava o quê? Apenas que ele o tocou no exato momento em que pensava em Clarinha e em um corpo de mulher e estava então já excitado por dentro, apenas que estava sentindo muita saudade de ter seu corpo tocado, apenas que um corpo poderia ser tocado por qualquer outro corpo e ser esquentado por dentro... E João mais ainda se desentendia e se perdia. E, estando emaranhado no próprio pensamento, ouviu, como que num sussurro, a voz de Vavá que, de novo, o buscava para fora de si.
– João, vou te dizer agora uma coisa que preciso dizer para ficar mais calmo. João, eu estou apaixonado por você, e por sua causa consegui esquecer o homem que matei e parei de sofrer de culpa. Desde que você chegou aqui, menino, tudo ficou mais bonito, ficou tudo bonito igual a você.
João escutava como num sonho e tudo lhe parecia absolutamente irreal. Não conseguiu responder e nem mesmo escutar até o fim – sentiu o corpo enfraquecer e a cabeça pesar, e Vavá viu que empalidecia e suava frio. Aproximou-se e conseguiu ampará-lo no colo quando desmaiou. Durante alguns minutos pôde acariciar o rosto desacordado que tanto desejava ter perto de si. Quando o garoto acordou e olhou nos olhos do outro, teve medo, mas sentiu-se também protegido como só se sentia quando era criança e dormia no colo da mãe, ou naquelas noites em que amanheceu nos braços de Méri na pensão e tudo era novo e bom. Quase aconchegou-se naqueles braços que eram fortes, mas também ternos, mas levantou-se de uma vez e viu que os outros dois companheiros estavam na cela também e que o tinham visto nos braços de Vavá, e sentiu o corpo gelar por dentro em pavor pelo que poderia vir a acontecer agora.
– O rapaz passou mal e eu estava ajudando, fazendo ele voltar a si.
Os outros se entreolharam maliciosos e sentaram-se no lugar de sempre.
– Então você conseguiu o garoto bonito, hein perua? – Quem falava era Raimundo, e João se encolhia em seu lugar, sem conseguir dizer nada. João Ronaldo continuou:
– Então agora nós também podemos experimentar, não é mesmo, Joãozinho, agora que você já se abriu para o Vasquinho.
E João sentiu o olhar do outro como uma flecha de desejo violento. Tentou subir para sua cama, mas foi impedido pelos dois, que ainda tinham o que dizer:
– Hoje você dorme na cama de baixo, para facilitar nossa vida.
João sentiu os olhos se molharem e ainda tentou subir na marra, mas os homens o puxaram com força e o jogaram na cama de Vavá que olhava tudo sem saber como interferir. Tentou em vão ficar na cama com o garoto, mas os outros o tiraram de lá e o forçaram a subir para o alto do beliche.
– João, chama o carcereiro, grita, não deixa esses dois viados abusarem de você, você é meu, João, eu vou gritar.
– Não, fica quieto, não quero perder meu lugar no trabalho, não posso me meter em confusão. Deixa tudo como está. As luzes ainda estão acesas, não vai acontecer nada agora e sei me cuidar. E eu não sou seu Vavá, eu não sou de ninguém.
Quando mais tarde as luzes se apagaram, João tentou em vão dormir. Sentia que ninguém dormia na cela e que a tensão estava a ponto de explosão. Na cama de cima, Vavá se remexia de um lado para o outro. No outro beliche, Raimundo e João Ronaldo pareciam esperar pelo silêncio que só vinha depois que todos dormiam. João temia e sentia o coração afobado bater com força, ondas de calor iam e vinham e as lembranças abandonaram a mente agora totalmente entregue à tensão do momento.
Quando tudo respirava quieto na penitenciária, quando João quase conseguia descansar, ouviu o ranger da outra cama. Um deles descia da parte de cima do beliche. Falaram alguma coisa um com o outro, João não conseguiu ouvir. O corpo agora tremia inteiro de pavor. Tinha os olhos totalmente abertos, mas enxergava pouco mais do que os vultos dos dois homens. Percebeu que se movimentavam e viu que um deles abria a calça. Antes de conseguir pensar qualquer coisa, sentiu os braços do outro o segurando com força e amarrando um pano em sua boca. Tentou segurar a roupa no corpo, mas não tinha mais como resistir, a força bruta dos dois homens era impossível de enfrentar. Sentiu a boca de um deles passando por seu pescoço e a raiva que o tomou ainda o fez tentar lutar, mas foi inteiramente seguro pelo outro.
João foi brutalmente violentado pelos dois homens. O corpo que, nas lembranças que o tomaram à tarde, era fonte de alegria, era agora dor. Os dois homens tiveram seu prazer, e João ainda conseguiu pensar que aqueles dois, e tantos outros, mesmo quando se deitavam com mulheres, até com suas esposas, apenas tinham isso, um prazer roubado da dor da outra pessoa, que não eram capazes de fazer nenhum bem para ninguém. Mas o que João pensou, pensou na efemeridade do instante que passa sem deixar nada atrás de si, pois a dor violenta que sentia e mais o ferimento que não parava de sangrar o fizeram perder os sentidos. Quando os dois voltaram para a outra cama, Vavá desceu e acendeu uma lanterninha que tinha escondida na espiral de uma revista. Viu o garoto desmaiado e o sangue que não parava. Saltou para as grades da cela e começou a bater e gritar. As luzes se acenderam e o carcereiro veio rápido. Quando viu a cena na cela foi buscar a maca da enfermaria e Raimundo, Vavá e João Ronaldo foram levados à sala do diretor onde passariam a noite. Vavá insistiu para que fossem todos levados à enfermaria, para ficar atestado quem é que tinha cometido o ato; depois de muita conversa, acabou conseguindo e o registro do incidente dizia claramente que João tinha sido violentado sexualmente por Raimundo e João Ronaldo.
O garoto teve que ser encaminhado a um hospital e passar por uma cirurgia reconstituidora. Quase não resistiu à hemorragia intensa que teve e precisou ficar vários dias no hospital.
Quando já se sentia um pouco melhor, recebeu a visita do Padre Cláudio.
O padre se sentou na beirada da cama e tomou nas mãos uma das mãos do menino agora pálido e assustado. João deixou subir o choro que ainda não tinha vindo e apoiou a cabeça nas pernas do padre. E sentiu falta de seu pai, pela primeira vez. E a saudade da mesa de jantar de sua casa veio forte como nunca antes, o pai, a mãe, os irmãos, Lindalva cuidando de tudo, e as lembranças se embaralhavam, e os homens todos que já tinha conhecido nessa vida de repente estavam contaminados pelo cheiro podre daqueles dois, e João tinha medo, e queria olhar o rosto de seu pai, para ver de novo um rosto de homem em quem confiar. Levantou então o rosto e olhou de frente o padre, que era um homem.
– Padre, o que o senhor faz com os desejos do corpo?
– Ah, meu filho, vivo em esforço para segurar essa força de vida que, por desejo também, um desejo da alma, decidi conter. Mas não é fácil, já sofri muito, desejei muitas mulheres, amei uma delas, mas fiquei com o desejo todo recolhido em mim. Ficava ardendo por dentro, como uma queimação que não encontra paz, mas o tempo foi curando e eu fui conseguindo transformar o desejo do corpo em mais e mais desejos da alma, em amor por todos. Ainda sinto o desejo fazer meu corpo tremer, mas isso também me alegra, porque é sinal de vida, da força da vida que pulsa em mim.
– O desejo pode levar a pessoa a fazer muito mal a outra pessoa. Vavá, que é meu amigo e que agora se diz apaixonado por mim, matou o homem que desejava. Pode me matar também, não é?, se eu não ceder ao desejo dele. E aqueles outros dois, que tomaram para si o que desejaram, a despeito de estarem machucando e ferindo.
– Eles quase te mataram, João, e agora estão com ódio violento de você, porque estão sendo punidos pelo que fizeram, serão levados a novo julgamento.
– Padre, lá na minha cidade eu tinha uma namorada, Clarinha. Eu gostava dela, acho que gosto ainda, mas fui embora dizendo que voltava para buscá-la e não voltei. Quando cheguei em São Paulo minha vida passada se apagou da minha mente e só agora está voltando. Eu desejava Clarinha, Padre, mas não tinha pressa e quando cheguei aqui eu ainda era virgem. Mas aí conheci uma moça que é prostituta, mas que gostou de mim e me levou para a cama dela, e com ela eu conheci o corpo da mulher, e tive prazer e me senti homem, padre, e gostei das alegrias todas do corpo. E depois conheci outras moças e quando fui preso estava até começando a gostar de uma outra, a Danila. Mas, padre, nunca desejei com violência, eu não entendo isso não.
– Viver os prazeres do corpo não é pecado não, João, se é isso que você quer me perguntar. Pecado é desrespeitar o desejo do outro e fazer valer o desejo próprio com violência.
– Mas e agora, padre, eu fiquei contaminado por aqueles dois, estou sujo do corpo deles. Eu que pensava em voltar para casa quando sair daqui e procurar Clarinha e quem sabe tê-la para mim, ter o corpo dela pela primeira vez, Padre, eu não vou mais poder, estou sujo agora, marcado.
– Eles não têm aids, João, foram feitos exames no dia seguinte ao ato.
O padre falava com calma e João o olhava atônito. Não era disso que falava, e o padre não entendia. Não tinha medo de doença do corpo. A marca que sentia era outra, era a marca da possibilidade. E a cabeça de João embaralhava, a frase não se completava, ele não saberia se explicar. A maldade, ser capaz de machucar, e o pensamento quase encadeado foi interrompido pela voz do padre que continuava sem entender e sem nem saber que não entendia. Mas era bom, e João o ouvia, mesmo sem esperança.
– Você vai ficar bem, João, e vai voltar para sua casa com o mesmo brilho nos olhos, e vai reencontrar sua família e seus amigos e sua namorada.
E os olhos de João agora brilhavam molhados e o choro não estancava, como o sangue na outra noite. E sentia-se perdido e já não acreditava no que diziam, e o mundo lhe parecia mais e mais marcado pela feiúra.
– O mundo é feio, padre, e eu antes não sabia disso.
– O mundo é belo como seus olhos, João, mas a beleza às vezes se encobre.
Depois de um tempo em silêncio, o padre disse que tinha pedido a transferência dele para uma outra penitenciária, também no interior do estado, que era considerada um modelo de bom funcionamento, apenas dois presos por cela, celas sempre abertas, trânsito livre pelos pátios, muita área verde, trabalho para todos em horta, plantação de milho, cozinha e ainda uma marcenaria. Estava sendo tudo acertado para que ele saísse do hospital direto para lá. Além disso, depois dos três meses de excelente comportamento e trabalho, sua pena já tinha sido reduzida para um ano e oito meses, e o padre continuava confiante em novas reduções que o fariam sair com um ano, ou seja, nove meses mais tarde.

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