quarta-feira, 16 de novembro de 2011

III

Apenas cinco dias haviam se passado desde que João tinha subido no ônibus em sua cidade. Veio com o desejo da vida toda: conhecer o mundo. Foi preciso acompanhá-lo passo a passo para entender o que vai vir. E é preciso muito cuidado para que não o percamos de vista. Coração de João era como um animal pronto a explorar seu mundo. Apenas isso o guiava, e nada do que lhe diziam alterava o rumo de seus passos. Não tinha mais nenhum plano, as imagens de sonho em que levava Clarinha para morar no mais alto dos prédios tinham desaparecido de sua mente através da força intensa da novidade de tudo que o cercava. E o novo ia mudando por dentro o rumo dos seus passos, e ele não sofria, porque o novo era o que tinha buscado sempre. Mas Padre Antonino não tinha perdido a razão: a alma de João continuava pura como a de uma criança com um parque inteiro a explorar em sua frente. Não conhecia a malícia, apenas aceitava o que lhe era oferecido. João tinha sede de experiência e a dor do menino que tinha corrido em vão o dia todo, à procura de ao menos uma paisagem nova, ainda o perturbava. Em São Paulo, não. A cada passo, o mundo era novo.
Mas João estava confuso por causa das palavras de Tonico, que faziam eco às de Marluce: o mundo é sempre o mesmo, onde quer que se vá. Enquanto tomava café da manhã, naquela segunda-feira, estas palavras rondavam sua mente, mas não sucumbia a elas, porque o que vinha experimentando era o seu exato oposto. Estava apenas intrigado e tomado por uma dúvida que permaneceria espalhada no fundo de suas vivências, mas não a ponto de fazê-lo abrir mão delas.
Logo sairia à procura de trabalho. Tinha comprado o jornal e anotado o telefone de alguns anúncios que tinha visto em placas pelas ruas. Ali mesmo, na mesa do café, olhava o jornal. E então Bráulio veio se sentar com ele. João estranhou que ele não fosse se sentar sozinho, mas apreciou a companhia.
– Bom dia, rapaz. Está procurando trabalho?
– Estou sim. Se souber de alguma coisa, fala comigo. Não posso deixar o dinheiro que trouxe acabar antes de arranjar um jeito de viver por aqui.
– Pois tenho, sim, uma coisa para te oferecer. É só vir comigo, que no caminho vou te explicando.
João sorriu satisfeito, não esperava essa ajuda. Bráulio mal tinha falado com ele, desde o dia em que tinha chegado à pensão. Agora se aproximava e oferecia ajuda.
Quando Tonico desceu, estranhou os dois sentados juntos, pois estava na pensão há quase um mês e nunca tinha tido a chance de trocar mais do que duas palavras com o companheiro de quarto, que sabia que já estava lá por vários meses. Sentou-se também com eles, e João logo foi contando que Bráulio tinha um trabalho para ele. Tonico mais ainda se intrigou, pois desconfiava, e muito, daquele sujeito. Bráulio ficou em silêncio, evitando encarar Tonico, que o olhava com insistência. O ar na mesa estava pesado, menos para João que aproveitava o prazer do café depois de uma noite de sono tranquilo.
Quando Méri apareceu no salão, João sentiu as pernas trêmulas por baixo da mesa. A moça veio sorrindo em sua direção:
– Bom dia, meu rei. Aposto que dormiu como um anjo, não foi? Eu dormi como uma rainha. Bom dia, Tonico; bom dia, Bráulio – e entrou para a cozinha de onde trouxe bolo para os três.
Tonico riu e cutucou João:
– Prestígio como o seu com nossa Merizinha eu nunca tinha visto por aqui não. Êta moço arretado esse aí.
Bráulio não disse nada, mas comeu satisfeito seu pedaço de bolo. João, envergonhado, ainda não tinha comido o seu quando a moça voltou:
– Não vai comer o bolo que fiz para você? Não vá fazer uma desfeita dessas comigo, não é? Depois de tudo que fiz por você ontem – e passou a mão de leve pela nuca de João, que desta vez tremeu foi o corpo inteiro, além de sentir o rosto pegar fogo.
Tonico riu e apoiou:
– Isso mesmo, Méri, uma desfeita desses não se faz. Come seu bolo que está gostoso demais, como a boleira – e piscou um olho para Méri, que já sabia que esse era o código que ele usava quando queria passar a noite com ela. A moça sorriu assentindo e pensou, satisfeita, que teria um dinheirinho a mais para comprar um presente para João.
E João não percebeu a comunicação entre os dois e comeu seu pedaço de bolo quase sem sentir o gosto. E teve que se apressar, pois Bráulio já se levantava. Disse que o esperava lá fora. Tonico aproveitou a ausência do outro para dizer o que pensava dele:
– João, menino, vai com todos os olhos abertos, porque não confio nada nesse Bráulio.
– Tonico, o homem passa o dia no trabalho, volta, dorme, acorda, vai para o trabalho. Que perigo que um homem desses pode oferecer?
– É que ninguém nunca soube que trabalho é esse que ele faz. E eu, com minhas antenas todas ligadas, desconfio que boa coisa não é. Por isso, repito: vai com cuidado. Por que não espera um pouco? Eu também vou procurar trabalho, se Laurinda me aceitar de volta, e aí podemos procurar juntos, quem sabe trabalhar juntos.
– Não posso esperar não, Tonico. O dinheiro que trouxe é muito pouco e você nem sabe se vai mesmo ficar por aqui. Vou com Bráulio, se preocupe comigo não.
– Tudo bem. Mas me conta, e a Méri, hein? Que coisa boa, hein, João? Me conta, vai.
João enrubesceu outra vez e só sorriu, mas não disse nada. Saiu atrás de Bráulio que fumava na porta da pensão. Andaram juntos e em silêncio por algum tempo.
João, que nunca soube desconfiar de nada, num instante esqueceu as palavras de Tonico. Caminhava satisfeito, com a esperança toda que sempre tinha carregado por dentro. Ia arranjar um trabalho, e era só isso que ainda precisava para se tranquilizar e viver como sonhou viver, em São Paulo. Depois, com calma, daria um jeito de estudar. Ia agora olhando a rua e percebendo o movimento novo, era sua primeira segunda-feira na cidade. Apenas o seu quarto dia, e pareciam décadas já passadas longe de sua família. E João, num repente, sentia que sempre tinha estado longe das pessoas com quem vivia – estava longe porque sempre com o coração ansiando pela estrada.
Depois de meia hora de caminhada chegaram a uma casa antiga, com muro alto e interfone do lado de fora. Bráulio tocou e logo o portão foi aberto para os dois. Lá dentro, a casa era muito bonita, com tudo bem cuidado, pintura nova, móveis bons, coisa fina. Entraram pela porta da frente e deram numa sala grande com três mesas, cada uma com um computador e uma moça trabalhando. De dentro vinha um murmurinho de gente conversando. Bráulio apresentou João às moças e continuaram entrando. Passaram por duas portas fechadas e, ao fundo do corredor, entraram na única porta aberta, de onde vinha a conversa. Lá dentro estavam quatro homens reunidos em uma mesa grande e redonda. Discutiam algum assunto do trabalho e não pareciam se entender. João olhava tudo com olhos muito curiosos. Bráulio mais uma vez o apresentou e sentaram-se os dois em um pequeno sofá no canto do cômodo. Bráulio disse que, assim que terminasse a reunião, falariam sobre ele. E João assentiu e continuou tentando entender a conversa. Mas era tudo muito confuso, parecia uma fala truncada, como se não quisessem se fazer entender.
– Bráulio, do que é que eles estão falando?
– Se quiser trabalhar aqui é melhor não fazer muitas perguntas. Só o que tem que fazer é cumprir as ordens que lhe dão. Foi assim que eu comecei.
O garoto, intrigado, tentou continuar:
– Mas o que é que vocês fazem aqui?
– É um escritório, você não viu as secretárias lá na frente?
– Mas escritório de fazer o quê?
Bráulio não respondeu e o olhou duro. João se calou e esperou até que os chamassem.
Quando finalmente a reunião terminou e dois dos homens foram embora, os outros dois chamaram Bráulio e João para a mesa. Bráulio explicou a situação de João, recém chegado do nordeste à procura de trabalho para viver em São Paulo. O homem mais alto, chamado Nestor, olhou para João fixamente, como que querendo ver se o menino serviria mesmo para o trabalho. Por fim se levantou, chamando:
– Vem comigo, garoto, vou te mostrar o que é que nós temos para você.
Foram até os fundos da casa, onde havia um galpão enorme. Abriu a porta grande e lá dentro, para surpresa de João, havia uma loja. Ou uma espécie de loja: produtos de todo tipo à venda, desde roupas a eletrodomésticos. A porta em que estavam dava para os fundos da loja, que era fechada para a rua. Do outro lado, tinha uma pequena porta que se abria para a rua que passava nos fundos da frente da casa. E Nestor explicou que precisavam de um vendedor.
– Você acha que consegue? Não vai ficar sozinho não, daqui a pouco chega a Danila, nossa vendedora há muitos anos. É só atender os fregueses com atenção, dizer os preços das coisas, cuidar do dinheiro. Aqui só recebemos com dinheiro, não vale cheque, nem cartão de crédito; as coisas são muito baratas e o povo entende nossas condições. Temos só essa portinha pequena, quem vem aqui é porque já conhece; a região aqui é muito insegura, por isso trabalhamos com a porta fechada, quem chega toca a campainha; e só a Danila pode atender a campainha, certo?, sua função é só de atender quem entra.
Nestor terminou a explicação e continuou olhando fixamente para João, que depois de algum tempo, sorriu um sorriso aberto e disse que sim, que aceitava sim o trabalho, que era fácil e que gostava muito de conhecer gente e seria muito bom trabalhar atendendo as pessoas.
Foram então para o escritório da frente, onde João ficou para acertar os detalhes com uma das secretárias. Mostrou a carteira de trabalho novinha que tinha feito em sua cidade antes de vir embora. Anotou a lista de documentos que tinha que trazer no dia seguinte e sorriu de novo, pois era tudo fácil, estava preparado, com tudo arrumado à espera de um trabalho.
Voltou para a pensão sozinho, sem entender direito qual era o trabalho de Bráulio. Mas não se inquietou, pois não entendia mesmo quase nada da vida dessa cidade. Mas gostava, e até gostava do que não entendia, o mundo era mesmo essa coisa grande, muito maior do que ele, que agora não entendia nem mesmo o que se passava por dentro de si. A distância em relação à vida de antes era cada vez maior, junto com a falta de vontade de fazer um contato qualquer com a mãe, o pai, Clarinha. Mas desta vez sentiu uma dor estranha no meio do peito. Chegou à pensão e foi direto para o quarto, escreveu uma cartinha pequena, pai, mãe, cheguei bem, arranjei um trabalho hoje, não se preocupem comigo não, quando puder vou visitar, diga a Clarinha que mando lembranças, mas que não espere por mim, a bênção. Foi logo ao correio enviar a carta que não passava de uma espécie de despedida, antes que se arrependesse de ter escrito. Depois resolveu entrar na igreja que ficava ali por perto.
A igreja era grande e estava cheia de gente sentada, ajoelhada, gente pobre, rica, de todo tipo. João se sentou no primeiro banco e ficou quieto, os olhos fixos no cristo crucificado atrás do altar. Era um cristo bonito, mas o sangue que escorria das chagas parecia real e João sentiu um incômodo no estômago ao imaginar o peso daquela dor. E então pensou que aquele deus sofria e achou estranho que um deus sofresse. E mais estranho ainda lhe pareceu a dor do deus quando pensou que ele mesmo, que não era nada, quase não sofria. Dor que sempre teve na vida foi só aquela vontade de ir embora, mas isso nem dor direito era, era mais uma esperança, um desejo. Doía pela longa espera. Agora, ali dentro da igreja no centro da maior cidade do mundo, nada doía em João. A carta já tinha sido enviada, o coração agora descansava e estava livre para a vida nova que vinha. João queria ver o mundo, a cada dia uma sua face nova, a cada dia o coração surpreso.
E sentiu no peito uma alegria que era seu jeito de agradecer. Não pediu nada, porque já tinha alcançado o desejo que carregava desde menino. E talvez porque tivesse ficado agarrado naquele desejo, seus olhos para o mundo ainda eram de menino. Lembrou-se de Padre Antonino e sorriu, a lembrança do padre era uma bênção, como uma companhia para a vida. Pensou em Clarinha e pediu perdão e não soube explicar onde tinha ido se esconder a vontade de lutar para ir um dia buscá-la – talvez fosse só a humildade de se render à vastidão da cidade e da vida nova que tinha: não podia mais saber do futuro. E sentiu o calor do afeto dos pais e dos irmãos e agradeceu. Quando levantou os olhos e viu outra vez o cristo manchado de sangue, teve vontade de sair da igreja e não voltar mais. Saiu sem olhar para trás.
Quando à noite, na pensão, quis procurar Méri, encontrou a porta do quarto trancada, e sabia que isso era sinal de que estava acompanhada. Foi dormir com a imagem dela na cabeça, e nem entendeu que sentia ciúme.

No dia seguinte, começou a trabalhar. O movimento era grande, mas João conseguiu se organizar e satisfazer os patrões. A carteira foi assinada para o cargo de auxiliar de serviços gerais e a empresa apareceu no documento como escritório de contabilidade. Mostrou para Tonico, que continuava achando tudo muito estranho, mas ele próprio não se inquietava. Estava gostando do trabalho e a Danila o ajudava muito. Nestor de vez em quando vinha ver o movimento da loja e sempre sorria satisfeito. A mercadoria saía rápido e novos estoques sempre chegavam. Uma vez João perguntou por que é que variava tanto o tipo de mercadoria que vendiam, mas Danila disse que não sabia e que não interessava a eles saber disso, que era coisa dos patrões. João se conformava e quando recebeu o primeiro salário quis pagar a Méri por um encontro, mas ela se ofendeu e nem quis recebê-lo naquela noite. João ficou confuso e no café da manhã do dia seguinte perguntou o que tinha feito de errado. Ela respondeu sem rodeios:
– Não viu ainda que gosto de você, que queria era me casar com você e parar de receber outros homens no meu quarto? De você não quero dinheiro, só se fosse para sustentar a nossa casa.
João sorriu sem jeito e disse “desculpa, mas quero me casar ainda não, e quero pagar como os outros”. E Méri aceitou porque não podia perder um cliente e porque assim ainda tinha a chance de tocar no corpo que queria que fosse só dela. E que sabia que era só dela, por enquanto. O corpo virgem de João tinha sido só dela, e quase chorou ali na mesa do café, pensando que logo não seria mais, e teve raiva e foi para a cozinha e fez uma corte na mão. João ouviu o grito e correu lá dentro e ela o mandou sair, dizendo que não tinha sido nada. E ele foi trabalhar acreditando que não tinha sido nada.
E os dias corriam um depois do outro. Tonico mudou-se para a casa de Laurinda e João prometeu ir sempre visitar.
Mas quase nunca ia. João, concentrado em si mesmo, tinha os olhos semi-fechados para o que se passava com os outros. Não que ele fosse uma pessoa má: não era. E talvez até tivesse a alma pura, como tinha dito o padre. Mas João sofria de uma espécie de cegueira que o mantinha preso a uma visão parcial das coisas. Como todo mundo. E a parte que ele via era, antes de tudo, aquela que se ligava ao que andava procurando. Como todo mundo? E o que buscava agora era o trabalho e a chance de conhecer São Paulo inteirinha. Todo domingo saía passeando, de cada vez um bairro novo, um ônibus diferente, um caminho desconhecido no metrô. No princípio, às vezes Méri ia com ele, agora não vai mais. E João começou a olhar para as outras moças, agora que já não tremia quando Méri tocava sua nuca na mesa do café. Corpo de João tinha se tornado um corpo de homem. O menino ia ficando longe na lembrança, como o corpo de Clarinha. E o homem que ele era agora era um homem esvaziado, de um vazio que procura o que o preencha. Mas era uma procura serena, João não tinha angústia, e nem pressa. Apenas vivia. Apenas corria com o tempo, um dia depois do outro, e não lutava contra nada. E era por isso que João era bom: amava e aceitava tudo o que a vida lhe entregava, sem lutar. E seguia conhecendo a cidade.
Depois de quase um ano trabalhando na loja, disse à mãe de Méri que queria se mudar de quarto. Foi para um quarto individual com banheiro dentro e até uma cama de casal. Méri se enciumou e ameaçou se cortar toda, caso ele levasse uma mulher para o quarto. Ele não se importou e à noite foi buscar Méri para estrear a cama com ele. Ela foi e se acalmou. Mas depois voltou a inquietação de não entender João – não entendia que ele fosse tão carinhoso e ao mesmo tempo tão distante. E ele não entendia o que ela esperava; João não tinha ideia de qual seria o jeito normal de viver; conhecia e sabia só o seu jeito mesmo.
Bráulio continuava no quarto triplo, agora com dois outros companheiros. Quase sempre andavam juntos para o trabalho de manhãzinha, mas, na volta, João sempre saía mais cedo, Bráulio voltava tarde, e João continuava sem saber o que ele fazia lá. Estava sempre em reunião com Nestor e os outros patrões e às vezes tinha trabalhos na rua que duravam até à madrugada, sempre antes da chegada de novo estoque de mercadorias. Mas João não perguntava mais nada depois que Danila o aconselhou a ficar quieto e sem perguntas em seu canto, se não quisesse perder o emprego. Danila era assim, sempre quieta no canto dela, fazendo o trabalho, indo e vindo sem questionar nada. João não sabia se ela entendia tudo o que se passava lá e fingia não saber, ou se estava como ele, sem saber de nada mesmo. Mas trabalhavam bem juntos, ela o ajudava quando tinha dúvidas, ele a acompanhava até o ponto do ônibus na saída, conversavam um pouco sobre suas vidas. Só um pouco, que ela não era mesmo de muita conversa. Era só um pouco mais velha do que João, mas parecia uma senhora, de tão séria e recatada. Era solteira e morava com os avós idosos na periferia, para os lados da casa de Tonico com Laurinda. Um dia ela o convidou para almoçar em sua casa num domingo qualquer. Ele aceitou e marcaram para o próximo domingo, pois teriam que fazer um trabalho extra de arrumação de mercadoria nova, pela manhã, e então poderiam ir juntos na hora do almoço.
Quando estava já no ônibus com Danila, sempre olhando as ruas pela janela, que era como sempre andava pela cidade, com sede de conhecê-la mais e mais, como quem procura conhecer uma pessoa até o fim de sua alma, viu uma moça sentada na porta de uma loja, uma mulher madura, e, num relance, João pensou que era Lindalva, sua irmã mais velha, sua mãe-irmã. A vida toda de João correu por sua cabeça num segundo, e levantou-se num salto puxando Danila pela mão, e desceram do ônibus e correram na direção contrária ao trajeto do ônibus e alcançaram a loja com a mulher na porta. Estava suja e com o olhar cansado. Era Lindalva, era Lindalva, meu deus, João pensava sem sentir, era Lindalva ali sentada com o olhar perdido e os pés machucados, meu deus, o que ela faz aqui? João se perguntava e sentia o chão sumir sob seus pés e vinha um choro que não descia e a vida toda de repente estava concentrada em um único ponto. Era Lindalva e ela ainda não o tinha visto.
João agachou-se em sua frente e tocou seus joelhos também machucados. “Lindalva”, ele chamou com suavidade. E ela finalmente o olhou e o olhar caiu direto em seus olhos molhados, e ela sorriu e o sorriso era fraco e tinha perdido um dente quase na frente e já não tinha o sorriso lindo que sempre o acalmara quando estava triste e era só um menino que sonhava. Ela o abraçou como se o pusesse no colo, ali mesmo, no meio da calçada da maior cidade... na maior cidade do mundo João encontrava sua irmã e ela estava morrendo... João pensava assim e não sabia o que fazer, e Danila veio e o ajudou a levantar Lindalva que quase não conseguia andar, e ela não trazia nada consigo, nem uma bolsa, nem um agasalho e as noites estavam frias.
Voltaram em silêncio ao ponto do ônibus e retomaram o caminho para a casa de Danila, era melhor do que voltar para a pensão, Lindalva precisava de um canto tranquilo para se recuperar.
E João, em vão, tentava conversar com a irmã. Ela não respondia a suas perguntas, apenas sorria e o acarinhava no rosto.
Na casa de Danila, ajudaram-na a se lavar e a levaram para uma cama simples e fresca. Então a vó de Danila fez uma sopa e João deu a ela na boca, como ela própria fazia com ele quando adoecia. E ela bebeu água com sofreguidão, e adormeceu nos braços do irmão a quem procurara por meses.
Foi isso o que João veio a saber, quando Lindalva acordou algumas horas mais tarde e conseguiu articular uma fala cansada e dolorida.
– João, menino, eu vim procurar por você, que a mãe quase já morria de tanta preocupação sem ter notícias suas. Quase um ano, e você só nos mandou uma carta. Por que, João, por que fez desse jeito? Clarinha só anda calada, olhos inchados de choro, os meninos de casa todos sem jeito para o trabalho, o pai sem sorriso. O que foi que você fez?
João sentiu o peso das escolhas todas que fez caírem sobre seus ombros, mas sabia também que tudo isso não tinha volta, e não sabia explicar porque, sabia só que era assim, e seria assim.
– Lindalva, minha irmã, eu não sei me explicar. Só sei que não era ainda a hora de voltar, nem de dar notícias. Fiz o que pude, avisei que tinha chegado bem, disse para Clarinha não me esperar, porque nem eu sei mais de mim. Estou conhecendo o mundo, não era isso que eu queria sempre? E isso me toma tanto, e são tantas coisas novas, que não penso em mais ninguém, preciso ficar calado para um dia conseguir voltar. Acho que é isso, mas não sei não. Devo estar todo errado, se fiz você ficar desse jeito. Lindalva, o que foi com seu dente?
– Logo que cheguei fui assaltada e perdi tudo que trazia comigo. Tive que ficar na rua, e na rua me machucaram muito. Um dia um homem me deu um soco na boca porque me recusei a me deitar com ele. Foi tão forte que me arrancou o dente. A polícia chegou, me levou ao hospital, depois me deixaram na rua de novo.
Desta vez João não segurou mais e caiu num pranto sentido com a cabeça no peito da irmã.
– Lindalva, você vai ficar uns dias aqui para ficar mais forte, depois vou comprar sua passagem e você vai voltar para casa, viu? E vai dizer para o pai e a mãe e os irmãos e Clarinha, que não se preocupem comigo, que quando eu puder, quando for a hora, vou voltar e vou levar presentes e vou abraçar cada um.
– João, meu menino, volta comigo, volta para casa, vem enquanto é tempo, enquanto ainda pode ter Clarinha de volta, enquanto ainda temos você vivo e forte em nossas lembranças, vem comigo.
– Eu não posso, irmã, não posso. Minha vida me chama, tenho muito ainda o que ver. O mundo é grande demais, até já aprendi que São Paulo não é a maior cidade do mundo, imagina você, e eu a vida toda sonhando com a maior cidade do mundo. Diz que a maior é a Cidade do México, tenho um amigo que já foi lá, morou anos no México, depois voltou, está agora de volta na casa da mulher e da filha pequena. Ele saiu por aí como eu, Lindalva, porque queria ver o mundo, e agora voltou para a família que tinha deixada para trás. Eu vou voltar um dia, sabe, só não sei quando vai ser. Ouvi por aí que é bobagem querer ver o mundo, que é sempre tudo a mesma coisa. Que as pessoas são sempre iguais. Pode ser, mas preciso descobrir sozinho, ver com meus olhos. Talvez vai ser aí que vou querer voltar. Mas por enquanto, Lindalva, tudo que vejo e vivo acho diferente, acho novo, e cai em mim como uma fruta madura no cesto, uma coisa nova e bonita para ser comida.
E João sorria, e o sorriso ainda era iluminado como o do menino que um dia tinha corrido o dia inteiro à procura do fim do sertão. E Lindalva entendeu que ele não ia voltar. E adormeceu outra vez, que o cansaço que sentia pesava todo sobre seus olhos. Há meses não deitava o corpo machucado numa cama, e agora o sono vinha como agradecimento ao cuidado.
João, Danila e os avós da moça almoçaram em silêncio. João agradeceu muito por terem acolhido Lindalva e pediu que a deixassem ficar por uns dias, só alguns dias. Agradeceu outra vez quando disseram que sim. Depois que os avós se levantaram da mesa, João e Danila ficaram mais algum tempo sentados, e ele se sentia constrangido e ao mesmo tempo acolhido. A moça então começou a conversa.
– Não se preocupe, João, vou cuidar dela como de uma irmã.
Os olhos de João se molharam e, quase sem conseguir, continuou a conversa difícil.
– Me sinto culpado por ela, Danila. Foi por mim que ela veio parar aqui, nesse mundo tão diferente de nossa casa, onde ela sempre viveu, onde ela sempre quis viver.
Então Danila se achegou para junto dele e o abraçou como se faz a um menino que chora. E ele deixou descer o choro todo. E continuou a falar.
– Não sei por que estou fazendo desse jeito, por que não consigo me comunicar com eles, dar notícias com frequência, mandar ajuda, presentes, como quase todo mundo faz. Parece que estou partido e que aquela vida que tive lá não pode se comunicar com a vida que tenho aqui. Então não entro em contato com eles, porque nossos mundos não podem se comunicar. Mas eu sei, Danila, que isso não é certo, que é só pôr as palavras no papel e levar para o correio e pronto, nos comunicamos. Mas não consigo. Pior: não quero.
A moça escutava aflita e quase entendia, e não entendia. E pensava que era mesmo meio maluco aquele moço tão bonito e tão carinhoso. E sentia vontade de mais abraçá-lo, como se acolhe um menino que sofre. Ou como se abraça um homem? E Danila também se confundia porque era recatada demais para pensar que podia estar tocando um homem. E João em seus braços ainda chorava e ainda a tocava. E ela sentiu calor e quis abrir mais a janela, mas não queria tirá-lo de seu regaço. E foi ele que num repente levantou-se e a olhou nos olhos:
– Danila, você acha que sou ruim? Quero dizer, sou uma pessoa má?
– Não, João, acho que você tem os olhos muito brilhantes para ser mau – foi o que ela pôde responder, agora já contendo a vontade de beijá-lo.
– Por que então joguei minha irmã na rua para ser violentada?
– Você não sabia. Você não teve culpa.
E João se perguntava sobre se não saber era mesmo não ter culpa.
E agora Danila também tinha os olhos molhados e ele percebeu e acarinhou o rosto dela. E pousou delicadamente os lábios nos lábios dela. E ela como que nasceu na novidade do contato desejado e nunca permitido. E também não sabia por que assentia no que tinha antes negado a si própria. E ele se distanciou para vê-la e depois voltou e desta vez entreabriu os lábios e deixou que a língua procurasse pela língua dela e ela aceitou, mas tremia de medo e prazer. O toque foi simples e rápido e então ele se deitou de novo no regaço que o continha e ela acariciou seus cabelos e o tempo passou até Lindalva mais uma vez despertar.
E então João e Danila levantaram-se e olharam-se nos olhos por um instante, e ali se deu uma comunicação carregada de tudo o que não podiam ainda entender. Caminharam até o quarto, sentindo o chão vacilante sob os pés – tinham os dois perdido a segurança a que estavam acostumados. Encontraram Lindalva sentada na cama, desta vez com o ar mais desperto e firme. Tinha força no olhar e parecia pronta para se movimentar.
João sentou-se na beirada da cama e Danila ficou de pé, olhando-os. Sentindo o calor da boca de João, sentindo ternura por Lindalva, sentindo medo e um frio estranho que penetrava por dentro da pele quente.
Lindalva começou a falar, assustando João, que nunca tinha antes escutado aquele tom na voz na irmã.
– João, eu não quero ir embora, eu quero ficar aqui e lutar contra quem me machucou na rua – e João viu o ódio que saltava dos olhos dela, e teve medo.
– Lindalva, onde vamos achar essas pessoas, e o que você pode fazer contra elas?
– É fácil achar, João. Quem mais me machucou não foram as pessoas que moram nas ruas, não. Quem mais me machucou foram os homens da polícia, e as pessoas bem arrumadas que passavam por mim e me olhavam com nojo. Um dia, eu estava deitada, sentindo frio e fome, passou um homem de sapato muito fino; olhei para ele nos olhos, esperando talvez uma ajuda. E ele, sabe o que fez, João, ele me cuspiu e o cuspe acertou em cheio no meu rosto, João, e isso doeu muito mais do que aquele soco que tinha me arrancado um dente. Eu fiquei com ódio, João, com ódio das pessoas que passam por outras na rua e as olham como se fossem pedaços de carne morta. Eu não quero ir embora e deixar isso tudo continuar acontecendo por aqui do mesmo jeito e ver que ninguém faz nada contra isso.
– Mas Lindalva, meu Deus, o que você pode fazer? Primeiro, para ficar aqui, vai ter que arranjar um trabalho, senão volta para a rua e não vai ter força nenhuma para lutar. E, aqui trabalhando, seu tempo vai todo embora nessa luta que é só a de se manter de pé, tendo o que comer.
– Eu sei, João, e já pensei num jeito. Eu quero ser freira. Vai ser como freira que vou poder fazer o que quero.
João ficou em silêncio, perplexo com o que tinha escutado. Danila sorria levemente e entendia Lindalva. Ela também já tinha pensado em fazer parte da Igreja, para ter paz e quem sabe ajudar os outros. Mas escutando Lindalva ali, viu que a força que a outra tinha era muito maior do que a sua própria, e que era disso que a Igreja precisava, de força para lutar e não de moças angustiadas à procura de paz. Mas João não entendia.
– Lindalva, você disse que está com ódio. Como é que se entra para a Igreja com ódio? É preciso ir com amor, não é?
– Vou com o mesmo ódio que fez Jesus expulsar os mercadores do templo. Lembra, João, dessa história que Padre Antonino nos contava?
– Lembro, irmã, mas lembro também de muitas outras, e sei que o que movia Jesus não era o ódio.
– O ódio está me levando para querer fazer alguma coisa, João, mas o que tem no fundo é um amor muito grande pelas pessoas que, como eu, se arrastam pelas ruas à espera de alguma salvação. E assim também, João, posso ficar perto de você e não deixar mais a mãe e o pai sem notícias suas.
João se levantou e se pôs a andar pelo quarto, sentindo tudo em ebulição por dentro do corpo. Olhava Danila, olhava Lindalva, tentava olhar para si mesmo; mas o que via em si era apenas uma grande confusão. João não sabia de si e olhava as duas mulheres ali tão perto, e sobre elas também não conseguia saber. A certeza de Lindalva o abafava, a ternura no olhar de Danila o constrangia, e ele não conseguia responder a nada disso.
Ficaram os três em silêncio no quarto, João sentado outra vez na beirada da cama, Lindalva deitada olhando-os sem pressa, Danila sentada em um banquinho perto da porta, distante dos dois, mas próxima o suficiente para atender se a chamassem. Danila estava também perdida em si, o corpo em ebulição sentindo ainda o leve toque dos lábios e da língua de João, o coração comprimido, a cabeça entendendo Lindalva, a vontade de ajudar a moça, quem sabe seguir com ela, ser freira também, sair do mundo, mas a lembrança do beijo voltava e tudo se misturava. A vida antes tinha sido sempre simples, ia para o trabalho, fazia tudo direito e não perguntava nada que não fosse importante para trabalhar bem, voltava para casa, cuidava de tudo, era o apoio dos avós que iam envelhecendo com a segurança de tê-la por perto, no sábado fazia compras, cuidava da casa, no domingo ia à missa e às vezes dava um passeio com os velhos. Não tinham muito dinheiro, mas nada faltava. Não tinha muitas alegrias, mas seu coração seguia tranquilo. E agora não sabia o que fazer com o tumulto que a bagunçava por dentro e que era inteiramente novo. No dia em que João começou na loja, mal o tinha visto de relance, pressentiu que ia ser incomodada por ele. Até tentou se manter distante, não trocar mais do que duas ou três palavras, apenas as que fossem importantes para o trabalho. Mas ele tinha aqueles olhos que brilhavam como fogo e fazia perguntas e falava sem medo e quando sorria... Ah, o sorriso de João tinha aberto uma cratera por dentro de Danila. E ela tinha pensado, meio sem entendimento: esse garoto tem a vida nas mãos como um barro bruto que pede para ser modelado.
O ar no quarto era tenso, apenas o rosto de Lindalva tinha certa tranquilidade, ainda que marcada pelo ódio que a movimentava por dentro. O corpo estava fragilizado demais e não poderia ajudá-la a se mover; Lindalva estava cheia de um desejo de ação e de força, mas o corpo apenas pedia descanso e cuidado. E João, ainda sentado a seus pés, tinha um tumulto por dentro. Sentia que as coisas estavam fora de lugar, mas não conseguia recolocar nada. Sentia a fraqueza da irmã, gostaria de levá-la ao médico; sentia também um desconforto com os desejos dela, mas não se entendia bem, e tinha medo de apenas não a querer por perto, ainda essa angústia levando-o a querer distância da família e da vida antiga, e agora Lindalva ali, ao alcance de suas mãos, precisando dele, querendo estar perto, sofrendo por ter vinda à sua procura, chamando-o para voltar para casa. Voltar era impossível, o caminho tinha se desfeito completamente para ele; voltar só seria possível quando tivesse nas mãos um caminho novo, construído por ele, nunca o velho ônibus subindo pela mesma estrada... João pensava que nunca voltaria para o mesmo, o que ele queria era sempre o novo, e o mundo era grande, e as estradas muitas... Estava absorto em si mesmo quando ouviu de longe a voz da irmã:
– João, menino, vem cá, deixa eu sentir seu corpo, vem.
João se achegou a ela e deitou outra vez a cabeça em seu peito. Lindalva acarinhava seus cabelos, Danila os olhava com ternura. Olhos de João caiam em lágrimas que vinham de um lugar bem fundo.
– Você está sofrendo, João, por quê?
– Não sei dizer, Linda. O peito todo está queimando por dentro. Estou aqui nesta cidade há mais de um ano, já conheci muita coisa, mas ainda tenho muito o que fazer. Não sei se no próximo ano vou conseguir começar a estudar, não sei nem se ainda quero estudar, ou se quero mais é seguir viagem, conhecer outros lugares, o mundo todo. Sei que não quero voltar. Queria que você voltasse, que ficasse lá quietinha com a vida certa que sempre teve com o pai, a mãe e os irmãos. Se você fica aqui, me prende outra vez, me prende porque vou ter sempre a preocupação com você e não vou mais estar livre como tenho vivido.
– Ficar livre então é não ter com quem se preocupar, João? Até te desconheço, não é esse o João que cresceu lá comigo, debaixo de meus olhos.
Danila, que ouvia a conversa, sentiu um frio subir por dentro do corpo.
João agora estava sentado com o corpo encostado no corpo de Lindalva e ainda chorava. Segurava a cabeça com as duas mãos e o coração pesava no peito. Lindalva passava a mão pelas costas do homem que chorava perdido. Sim, João agora era um homem, embora os olhos ainda fossem os do menino. A tarde passava e a avó de Danila veio chamar para o café. Os, três, porém, não se moveram, havia ainda muito a ser dito. Mas as palavras não vinham mais e a dor crescia em cada um.
Depois de algum tempo, Lindalva dando sinais de querer dormir outra vez, João a beijou na testa e disse que voltava no dia seguinte depois do trabalho; tomou um café puro com Danila, despediu-se dos avós da moça e foi andando com ela até o portão. Se deram então um abraço demorado e um beijo terno nos lábios. Mas não sabiam o sentido do que faziam. João caminhou para o ponto do ônibus sentindo o calor do olhar da moça em sua nuca.

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